Fico
admirado de ouvir pessoas em rádios falarem sobre coisas que não
conhecem.Atacam Marx para alegar que a esquerda quer acabar com a religião e
batem no peito se dizendo iluministas ,sem saber que o iluminismo era
fundamentalmente anti-religioso e ateísta.
Kant
especificamente era teísta e escreveu um único livro sobre religião” A religião
nos limites da simples razão”,onde ele quebra
a barreira absoluta entre o bem e o mal,com o conceito de “ o mal radica
na humanidade”.Por isto foi impedido de novamente tratar do assunto.
Kant com
sua crítica da razão pura buscou fazer renascer a metafísica,a razão pura dos
racionalistas antes dele,mas, como eu já disse, este objetivo é estéril porque
não há nada que fuja do contato com a realidade,através da sensibilidade,que
está nos sentidos,que estão no corpo.Kant é a primazia da razão sobre os sentimentos.Embora
admirador de Rousseau,nunca enfatizou os sentimentos ,uma atitude pré-romântica
que já fazia eco na Alemanha,mas que vinha da França.
O fato,no
entanto,é que,pela sensibilidade,o corpo entrou na história do pensamento,de
modo amplo,pelo reconhecimento do papel dos sentidos.Esta assertiva é
verdadeira em termos,porque o pensamento não é só o dos filósofos mas o do
homem,o da simples razão(embora os filósofos sejam homens comuns também..) e
neste caso o corpo entra como problema com Cristo,com Cristo na cruz.O corpo
não entrou pela sensibilidade de Kant,o juízo sintético a posteriori.
A bem
,mais ainda, da verdade,este exemplo de cristo fundamenta a filosofia e a
política séculos a partir e depois de sua morte( e ressureição):a questão da fé
pelas obras ou pelo coração;através de São Tomás de Aquino e sua concepção
política a responsabilidade dos políticos em considerar os direitos dos povos
de serem dirigidos segundo critérios
cristãos(depois isto mudou com o absolutismo)e que é a base da concepção
de soberania popular,pela laicização dos conceitos tomistas.E no caso de Kant a
idéia de uma comunidade universal derivada do mandamento “ amai-vos uns aos
outros como eu vos amei”,pelo menos na sua perspectiva a mais genérica,já que
nesta afirmação existem muitas questões que estão até hoje a pulular na cabeça
dos homens.
Como se
pode amar um homem dividido por questões materiais de classe e de valor(inter.)Sem
falar nas separações geográficas e de tempo.A crítica à Kant,quanto ao seu
formalismo ingênuo ainda vale,mas ele expressa a possibilidade de
atribuição(segundo o seu criticismo)de conteúdos a esta formalidade “ vazia”.E
nisto,novamente,o alemão segue Cristo,que fez uma proposta para que a
humanidade criasse as condições para
estabelecer o Amor universal.Pelo menos isso tem que estar subentendido,porque não se pode acreditar que Cristo
achasse todos os homens bons.
Mas todas
estas conjecturas são para mostrar o quanto o pensamento e o corpo estão
imbricados de diversos modos,desde sempre.Cristo é o reconhecimento desta
verdade.
É falsa a
postura daqueles que se posicionam de um lado e de outro,os racionalistas e
irracionalistas,quando tudo é uma passagem.A razão se relaciona com o corpo e
vice-versa,dialeticamente.A razão desvela a causa das coisas e racionaliza o
mundo e o corpo,portador das emoções,sentimentos,desejos e valores,percebe o
mundo,de modos diversos.Cristo é as duas coisas.Se sabe a razão das coisas
sente o mundo igualmente.
Ocorre
que o Iluminismo,na sua formulação original,é puramente racional,ainda que
defendendo a “ primazia” da razão,supondo a realidade do corpo,porque este
seria “ comandado” por ela.Certo,nem a razão e nem o corpo comandam
sozinhos,mas influenciam no sentido da vida.
Contudo
há que se perguntar o que vem primeiro,o corpo ou razão.Ora se
a existência precede a essência,se a criança vem antes do adulto,o corpo
vem antes,como derivação de nascimento e de desenvolvimento da razão,o corpo
precede.
O corpo
já é um sentido como possibilidade,como lugar de atribuições de significado.
Não se há
de imaginar que na hora da cruz só a razão ou os sentimentos e dores agissem
independentemente.Simultâneamente as palavras de cristo expressam o contato com
a dor,com a sua missão.Um turbilhão,o qual tem que ser superado,para a razão
não sucumbir e a missão se cumprir.Assim é a existência,assim é a vida,assim
são o sentido e o significado.
O
iluminismo ,para sobreviver, tem que ser limitado infinitamente porque se não
for assim a razão,sozinha(o que é um delírio,uma psicose,uma mitomania),isola o
homem do mundo.A razão rejeita o mundo e o moraliza
na medida em que não aceita o seu caos .As possibilidades,os riscos,a irracionalidade(dos
desejos)fazem parte do mundo,o caos é bom porque contém em si tudo o que é
possível,o momento seguinte e com ele o futuro,logo a razão não é sozinha,mas
dependente deste mundo,em que está o corpo,o qual o percebe.
Observe o
leitor esta gravura de Goya,tirada de “ Os desastres da Guerra”
Ela retrata
uma das inúmeras violências cometidas pelo exército napoleônico na Espanha
(que
faria depois na Rússia).Napoleão usou a justificativa da repressão sobre este
país,alegando que na Espanha quem governava era a Inquisição e a superstição.
Vamos
supor que o homem torturado acima,destacado pelo retângulo fosse um
supersticioso e inquisidor,tendo já queimado senhoras inocentes na fogueira.Justificaria
este ato
?
Mas ele foi praticado em nome da razão.
Quando
Goya realizou estas gravuras,estava apenas acompanhando o gesto irado de
Beethoven,anos antes,ao riscar o nome de Napoleão da dedicatória de sua 3ª Sinfonia(Eroica),em
protesto ao coroamento do Imperador.E estava expressando, num primeiro
momento,a dúvida de intelectuais e artistas iluministas como eles,diante das
contradições do iluminismo,mas a verdade é que
uma conclusão inicial se retira disto tudo:a razão pura é tão repressiva
quanto a inquisição.