Esclarecimentos sobre o artigo
anterior
Muita gente não entendeu bem o
que eu disse no artigo anterior sobre as obras de Nietzsche.Isto
porque ao longo de minha atividade de pesquisador deixei ao léu
muitas informações sobre o método e em alguns artigos não dá
para simplificar sem vulgarizar ou comprometer as explicações.
“O Nascimento da Tragédia” é
fundamental porque é nele que Nietzsche rompe com a metafísica e
com razão identificada com a metafísica.São coisas um pouco
diferentes,mas eu não vou tratar disto aqui agora.
Para entender porque juntei razão
e idealismo temos que entender o método racional dos
gregos,especialmente Platão e Aristóteles,professor e aluno.Porque
é sobre esta concepção básica racional dos gregos que Nietzsche
irá fazer a sua rutura e construir a sua filosofia.
Em primeiro lugar nenhum saber
humano tem condições de abarcar o mundo todo e o tempo.A busca do
conhecimento é como perseguir a fuga cósmica e o que o ser humano
faz é tocar parte desta fuga.
O mito de Dédalo e Icaro
representa,como eu tenho citado constantemente,esta verdade,muito
embora ela tenha significados mais éticos do que
gnosiológicos,enfatizando mais a busca de uma medida subjetiva no
labor,própria dos jovens,do que a questão dos limites do
conhecimento.
Os antigos ,e estes de que estamos
falando , eram monistas avant la lettre e isto porque ,entre
outras coisas,não admitiam o movimento físico e não tinham noção
da infintude do mundo,do cosmos,como temos hoje.Um principio único,um
logos .
A intenção deles era construir
um conhecimento universal ,necessário,que expressasse de algum modo
o mundo real e o explicasse .
Para Platão a realidade era mera
cópia dos arquétipos ideais e só pela razão e pela ascese da
razão que repudia estas cópias para atingir estes modelos ideais,
se poderia chegar à verdade,como algo universalmente válido.
O critério de Aristóteles para
chegar ao universal é totalmente diferente porque ele parte do mundo
sensível para racionalmente encontrar aquilo que é comum a todas as
coisas e a todos os seres,deixando de lado o que é
acidental,acessório.A ciência do conhecimento para Aristóteles é
o estudo do Ser enquanto Ser,das sua leis permanentes internas em
suas múltiplas manifestações.Uma unidade na diversidade.
Mas o que ambos os filósofos
fazem é construir padrões,conceitos a partir de idéias
,ideações ,idealizações supostamente adequadas ao mundo
real,seja ele arquetípico ou real.
Contudo se a razão toca o mundo
real,a partir de ideias,não o toca totalmente,fazendo parte do
processo de conhecimento racional a idealização do mundo.
O termo idealização tem vários
significados,inclusive ético,no sentido de buscar um ideal,uma
causa,mas no plano do conhecimento racionalizar o mundo é
ideá-lo,idealizá-lo.
Neste sentido eu usei razão e
idealismo juntos,já antecipando Nietzsche.
O fim do racionalismo clássico,do
século XIX para cá,é uma negativa quanto ao caráter real da razão
e de sua obrigatoriedade como modelo de comportamento,no caso próprio
de Nietzsche.
No caso de Marx há um projeto
anti-metafísico,que não se realiza,como demosntrou Benedetto
Croce.Marx pretende pela antropologia do trabalho diluir a
metafísica hegeliana,mas se mantém nela afinal e por isso continua
no sistema (impossivelmente)fechado.Vou tratar disto nos artigos
seguintes sobre o marxismo nietzschiano.
A metafísica se diluiu(não se
esgotou)ne medida em que a fuga cósmica se tornou,com o
reconhecimento do movimento,algo claro(Kant).
Os sistemas racionais metafísicos
do passado foram e são progressivamente analisados segundo esta
evidência de diluição,ou seja,percebem-se os elementos cristalinos
de idealização presentes na razão.E ficam alguns de seus temas.
A Razão padroniza a vida para
dar-lhe ordem e sentido e é aqui que Nietzsche lança a frase
fundadora de sua carreira:” A metafísica é a continuidade errônea
de um erro inicial”.Pensar que estes modelos são essenciais para
manter a consciência no caminho da vida ,no sentido da vida é o que
a inviabiliza.
Como um filósofo da
vida,Nietzsche diz que a consciência pode se dissociar disto
exatamente para estar na vida,para ser vida.
Um exemplo que explicita bem esta
situação:o conceito de culpa .
A culpa é uma categoria ,um
padrão racional,metafísico,uma realidade além da vida real
,imposta a ela,pelo moralismo , pelo cristianismo.
A consciência não tem porque ,de
forma pré-dada ,assumir uma culpa,se não a tem.Entranhá-la em si
mesma diminui a potência ,reprime a vontade e distorce a
perspectiva.Adoece, diriam os delleuzianos baseados em Spinoza.
A consciência age no sentido da
vida,da potência,se deixa de lado esta conexão e repudia a
culpa.Por isso em genealogia da moral Nietzsche fala em “ má
consciência” ou “boa consciência”,quando respectivamente se
conecta com a culpa ou a repudia.
Este ponto é o que motiva Luckács
a fazer a relação de Nietzsche com o barbarismo nazista e é um
dos fortes exemplos desta verdade.
Mas eu tenho dito coisa semelhante
sempre a respeito de Nietzsche e é o que me impulsiona a discutir o
marxismo niezschiano ou o contrário o nietschianismo(se é que
existe)marxista(antecipado ,parece,por Franz Mehring):o que deve ser
repudiado é a sistematicidade fechada ,proposta pelo racionalismo
antigo.Diluída, a relação entre a consciência e a razão é
inevitável,no plano da experiência.
Não há como não concordar com
Luckács de que se não se pode dissociar esta concepção
genealógica de Nietzsche de uma visão psicopática da vida,que ,de
forma pré-dada,inocenta aquele que impõe dor a outrem ou obriga
aquele que sofre a banalizá-la.É como se o torturador não tivesse
culpa e o torturado não pudesse procurar justiça,no afã de ser
vital .
Quando comecei os meus estudos
sobre Nietzsche ,há muitos anos,pensava que esta perspectiva era
referenciada a um sistema de valores éticos(não morais)que separa
de vez a consciência(valor[hierarquia de valores])da
moralidade(razão[metafísica])e que,portanto,o comportamento
ético(não moral)impunha uma consideração do outro(do sofrimento
do outro)como atributo inarredável do valor:a estimação do
(sofrimento)do outro é a da dor de si mesmo.Se eu mesmo não sofro
não há porque não considerar a do outro como algo de mim
mesmo,mesmo que não venha(não há dialética).
Ao ler no livro do filósofo as
célebres diatribes de Nietzsche contra os fiéis que saíam da
Igreja sem se modificar interiormente(tão ao gosto de meu mestre
leonardo boff e dos cristãos de esquerda)pensava numa empatia
psicológica e axiológica com o outro ,mas ,embora,tenha dúvidas
ainda,dos textos,não se há de depreender isto não.A má e a boa
consciências o são na medida em que ela se favorece,se
potencializa.
Ao exigir dos corintios a
lembrança do sofrimento de Cristo na cruz,como dogma essencial da
prática cristã verdadeira(no entender dele)São Paulo falseia a
culpa,Nietszche tem razão: não é a humanidade toda que é culpada
,mas aqueles que estiveram lá e cometeram o crime da crucifixão.É
a história da música do Biquini Cavadão “ eu não matei Joana
Darc”.A lembrança,porém do sofrimento,enquanto permanece no
presente,é uma exigência,compassiva,da empatia necessária ao
bem,considerado em termos genéricos,não em termos do que vai além
do bem e do mal.
Se o sofrimento tivesse sido já
extirpado nem à história interessaria abordar o sofrimento do
passado,a não ser como lembrança,memória,no sentido de
advertência que o filósofo Max Scheler usou quanto ao nazismo.A não
ser como análise permanente e defensiva de futuras re-voltas do
passado.Como um mlitar que estuda as possibilidades futuras de ataque
para se defender e aos seus.
Nietzsche propõe uma filosofia da
vida que só se sustenta no presente(o nascimento da das-ein,do
presente em Heidegger?),porque o passado não importa e o futuro não
chegou.Ou não chega se não for presente.Quando chega já não é.
Mas eu entendo que ,pelas razões
supraditas,passado,presente e futuro estão interligados(tempo tribio
em Santo Agostinho).Para o cristão a memória(do sofrimento[de
cristo])é um dogma de comportamento,mas para um agnóstico como
eu,nos termos acima,o futuro orienta o presente e rearranja o
passado,na medida em que ele não mais se repete no presente,sendo
este presente a condição da utopia(futuro).
E se a razão idealiza
,Nietszche,também,de outra forma,como explicarei no próximo artigo.