sábado, 27 de junho de 2020

A miséria do cientificismo:o fim do monismo

Há muito vinha intentando escrever este artigo sobre um pensador do século XIX,Ernst Haeckel,que,para mim,sintetiza em seu percurso todos os problemas atinentes ao cientificismo,à ideologia cientificista,cujo periodo de gestação e maior desenvolvimento foi o século XIX.E escolhi esta figura até para não escrever um texto meramente destrutivo,porque ele tem contribuições interessantes ,válidas,embora discutíveis.Isto demonstra a minha visão de que o conhecimento é construído no tateio,com os recursos que cada época oferece aos pesquisadores.Dependendo da situação nem tudo está errado no discurso explicativo ou alguma coisa se aproveita.
Eu ainda pretendo escrever mais sobre Haeckel e ideologia científica,mas neste texto trato do monismo.
Monismo filosófico e científico é uma das variações subsequentes do materialismo.Por ele entende-se que existe uma causa básica ,fundamental ,em tudo o que existe(o Ser),na physis.
Esta idéia,o monismo,é nova,mas ,na verdade,se escuda em uma tradição antiquíssima que remonta ao estoicismo,fundador do jusnaturalismo,pelo qual a natureza possui “ regras” imutáveis,trans-históricas,que serviriam de modelo para a cidade,para a sociedade.
Muito embora tenha havido,desde então,uma evolução na ciência,este esquema básico permaneceu.A recusa do jusnaturalismo se deu ou começou a se dar no século XVIII,com Kant mesmo.Os parlamentos,recém nascidos,como fautores da legislação e diante de uma realidade social muito mais complexa,notaram a não exigibilidade eventual do jusnaturalismo e que o homem podia constituir os seus próprios modelos.
Mas a ciência manteve o princípio subjacente de uma única causação.Ora pelo principio da dialética,em Hegel-Marx,ora pelo da “ unicidade da natureza” na física newtoniana e ora pela teoria da evolução,onde se localiza Haeckel.Esta sobrevivência do passado persiste.
O monismo cientificista que se forma em torno da evolução(termo já discutivel)desconhecendo este passado,deplora a filosofia,tida como especulativa,sem contato com a realidade,num procedimento típico do positivismo,ao qual Haeckel também se filia.
Fuçando aqui a minha biblioteca encontrei o texto que procurava ,há anos,para escrever este texto.Em “ A Origem do Homem”,fazendo uma crítica aos que pretendiam um retorno a Kant para salvar,apesar da evolução so dogmas da teologia ele diz que o “ que falat a Kant é o conhecimento do organismo humano,de sua anatomia e de sua fisiologia”.No passo seguinte ele inocenta Kant de ter estas “ falhas”,pelo fato de que na época do filósofo não existirem estas ciências senão em forma rudimentar.
Este trecho denota que para Haeckel,como a maioria em seu tempo,a filosofia e a ciência são vistas como uma coisa só,indefiníveis em sua essência particular,nebulosas.
Este tipo de confusão ficou até aos albores do século XX.As fraturas da ciência,expostas pela descoberta do átomo e formação da psicanálise,destruíram o princípio da causação única.A favor de Haeckel está a constatação de que a filosofia ,desde os gregos ,sempre misturou o princípio do discurso com a idéia de causa(Aristóteles).
Lênin em seu “ Materialismo e Empirocriticismo” embaralha estes planos,mas a filosofia e a ciência são coisas distintas e é culpa do monismo ignorar tal coisa,o que gerou intervenções de cada um destes saberes sobre o outro ,prejudicando a marcha do conhecimento.


sábado, 20 de junho de 2020

Alienação ,Marxismo e sociedade primitiva

A idéia comunista é recorrente na história da humanidade,como a de república,que é mais resistente do que a de monarquia.Outras idéias também,como religião,mais resistente do que todas as outras,aparecem.
Idéias recorrentes devem ser levadas em consideração,porque elas podem ter um adequação muito forte com a realidade e com a humanidade,expressando os desejos mais recônditos e profundos dela.
No mundo antigo havia sempre a memória de uma “ idade de ouro”,em que todos os homens eram iguais e partilhavam de tudo o que se produzia fraternalmente,o que nos grandes impérios,agressivos e violentos do mundo servia de esperança para as classes mais oprimidas.
Este sentimento de esperança constituiu uma das vias de passagem do mundo antigo para o mundo medieval,especialmente e quase que unicamente pelo cristianismo:nos dois primeiros séculos de nossa era o cristianismo  fora totalmente diferente da simbiose com o Império Romano construida depois por Constantino no século IV.Este cristianismo “ primitivo”,objeto de um estudo de Engels no final de sua vida(em que Engels compara o cristianismo ao movimento operário do seu tempo),se regia por este principio de uma idade de ouro,em que cada um atuava na comunidade cristã de sua cidade segundo a sua capacidade e entregava ,no espirito de Cristo,a quem mais precisava.
Todas as comunidades visitadas por São Paulo no ano II eram regidas por esta regra(Ambrogio Donnini,” História do Cristianismo”)o qual prosseguiu no século XVIII com o Iluminismo Alemão,Herder,Klopstock,Winckelman e Lessing.
Mas curiosamente ,antes do século XVIII,nos séculos XVI e XVII ,em que a ciência moderna surge no cenário da história moderna(por isso moderna),utopias são preconizadas ,a prometer a velha idade de ouro.Só que estas utopias usam um critério diferente daquele dos oitocentos,tirado do cristianismo:a sua visão do comunismo e do socialismo é mais imposta de cima para baixo,antecipando os problemas do comunismo e do socialismo nos tempos atuais.Isto porque a base de um comunismo avançado é uma capacidade exponencial de produção,só conseguida pela industria moderna.
Apesar da ciência ter se catapultado nos dois séculos anteriores não foi capaz de mostrar uma influência sobre a economia.Então as utopias como a de Bacon,More e Campanella parecem reproduzir a comunidade primitiva e o cristianismo,mas na verdade eles deturpam um pouco o significado destas duas experiências,numa antecipação da problemática que vai ocorrer no século XX com o “ socialismo real”.
A chave para entender estas incongruências é a escassez:num contexto de sociedade primitiva a falta de recursos impõe uma contenção e distribuição que todos da comunidade aceitam.
A civilização,como os historiadores mostram,aparece dentro de uma roupagem repressiva e de classes ,porque há que distribuir produtos do trabalho que superam em muito,pela introdução de novas técnicas,a população da comunidade,que já  não é mais primitiva,mas baseada numa cidade,numa civitas .
Na época da primeira onda industrial(1750) ficou claro que a produção poderia atingir niveis exponenciais ,muito acima do registro demográfico ,e as condições para uma distribuição equitativa se tornam viáveis.Esta foi a conclusão(uma delas)do iluminismo alemão.
Mas o que unifica toda esta problemática e é o tema deste artigo é que na comunidade primitiva os instrumentos de trabalho e a produção estavam à disposição de todos,não eram alienados como hoje,em que o trabalhador produz mas não necessariamente recebe  o que ofereceu à sociedade.
Aparentemente esta constatação que coincide com o pensamento marxista seria algo motivador de um processo transformador no mundo da propriedade,porque isto seria o lógico  a fazer.mas em próximo artigo,vou mostrar que no mundo moderno a questão da propriedade,dos meios de produção não é tão simples de resolver.

domingo, 14 de junho de 2020

Massacrados de todos os países uni-vos II

Como uma pessoa de bem deve ter compaixão nos dias de hoje?No passado não havia tantas barreiras  entre o homem e a compaixão,mas hoje...Contudo uma barreira permanece :o dinheiro,o diabo amarelo,que parece ser a medida e a reprodução do mal na vida da humanidade,seja sob que forma se apresente,de acordo com a causa de sua preeminência:exploração,mania,perversão etc,etc.
Pelos exemplos se percebe que a questão mais decisiva é a exploração.Existem muitas barreiras entre os homens,até principalmente  ele mesmo se coloca como barreira(ele está sob todas estas barreiras e é o seu fautor),mas ,fora as questões pessoais,singularíssimas,em termos coletivos,a questão do dinheiro é a da exploração.
Trato da questão do dinheiro e da exploração exatamente para ajudar o homem a tirar esta barreira.
Contudo,ao longo da história,  esta proposta de remover pura e simplesmente a mediação do dinheiro não significou necessariamente uma libertação.Pelo contrário o progresso dependeu muito de como se se relaciona com o mundo real e dentro dele o dinheiro.
Não foi outro o caminho de superação da idade média,pela idade moderna,com os seus espaços maiores de liberdade.Deste período em diante a humanidade procura estes espaços até alcançar a utopia,que é o momento e o lugar em que os espaços são totais(totalitários?),para todos.
A reforma protestante foi este movimento moderno,que,de dentro,numa nova relação com o dinheiro,criou as condições para mudanças materiais e espirituais,que refletem até hoje.
O movimento social,não necessariamente herdeiro da reforma e que se inicia na revoluções inglesas e no século XVIII,de modo geral,sempre repudiou a relação com o dinheiro,mesmo o marxismo que afirmava ser o comunismo um derivativo do desenvolvimento interno do capitalismo.A mudança viria por uma tomada de consciência da exploração e por uma consequente ação revolucionária redentora.
Neste contexto, incorporar na militância o sofrimento real dos pobres era parte do processo e  a base teórica o confirmava pelo conceito de "concreto de pensamento":é preciso acompanhar dialeticamente o movimento real da exploração,dividindo a realidade até aos seus minimos detalhes,a atividade do trabalhador no momento exato de sua atividade e daí sucessivamente.
Até aí vai a ciência.Mas o registro dos sofrimentos,da fome,dos vexames,da morte,cabe à arte ,à literatura,à denúncia jornalistica e do pesquisador.
Este é o esquema de abordagem do problema do sofrimento,dentro do processo politico de sua contestação,mas em periodos de aparente resignação e desbaratamento de critérios,há que adaptá-lo.
Quer dizer,desde sempre aconteceu o que acontece hoje:na luta politica a distinção entre ciência e arte não ocorre.Acusações de responsabilidade pela exploração;distorções no processo revolucionário,que favorece menos a pessoas do povo do que oportunistas,tudo isto se mistura em épocas de incerteza e confusão como a nossa atual,agravada pela eleição de um fascista.
Como proceder diante deste quadro,quando se é acusado de ser comunita ou fascista ao mesmo tempo,por pessoas emocionalmente perturbadas e sem fundamento cientifico para agir,mas premidas por exigências de ascensão ou expressão reprimidas?
Se eu escrevesse  há muitos anos atrás sobre a necessidade de compaixão e abnegação revolucionária em relação aos miseráveis,para lembrar Vitor Hugo,eu falaria sobre personagens da vida  cotidiana pedindo ajuda em meio à fome (e à pandemia)e me sentiria satisfeito,mas hoje mesmo estas pessoas são militantes e questionam a veracidade destas abnegação e compaixão.
Formou-se no mundo de hoje um hiato profundo entre aqueles que possuem alguma coisa e os que não têm(como dizia Josué de Castro)e a resposta à ajuda nem sempre é reciproca.
Diante disto não admito que me torne indiferente ao problema geral do sofrimento como um lembrete permanente de que tal situação deve ser objeto de uma luta constante até a sua superação,mas o modos e métodos pelos quais pretendo fazer esta denúncia ,esta narrativa,mudaram.O que fica,no entanto, é a emoção inevitável,que gera revolta,como algo que ninguém pode me tirar.
No próximo artigo continuo.

domingo, 7 de junho de 2020

Freud e o Pai VII


Os que têm e os que não têm
(psicopatologia da vida cotidiana aplicada aos comunistas).


Há um outro liame entre Freud e o marxismo e o comunismo.Este último,não parece ,mas está inserido na vida cotidiana.A psicopatologia da vida cotidiana ,de Freud e Breuer, traz para o proscênio não só a presença (dasein)da neurose como o conceito,a categoria do cotidiano.
A partir deste texto e da psicanálise subsequente tornou-se possível relacionar grandes fatos da vida e da história com este cotidiano,porque ele é o primeiro corte sério ,sócio-psicológico, sobre a sociedade.
Acusa-se muito Freud de não ter uma perspectiva social em seus escritos(bem como se o acusa  de muitas outras coisas),mas na verdade sempre se preocupou com o meio psicológico em que as neuroses surgem e se reproduzem,não  sendo verdade que a ele faltasse compreensão de que a família é um fenômeno social.
As neuroses surgem na família ,mas elas têm um impacto social evidente(e são influenciadas pela sociedade) e  afinal , a existência do social não elimina a família que continua no social e vice-versa,dialeticamente(talvez).
Algumas interpretações ,no entanto,viram em Freud um outro monismo cientificista que pretendia explicar tudo pela psicologia,pela psicanálise,inclusive a história ,a politica e a civilização.Foi por causa deste texto,” Psicopatologia da Vida Cotidiana”( e do " Mal-Estar") e não há razão para pensar isto de Freud.Mas foi por causa dele ,em função da condição propiciada, que surgiu a possibilidade,de unir estes fatos com uma mediação ,pela primeira vez,acessada in totum(se é possível)pelos cientistas e pesquisadores.