terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Sartre e o monismo dialético

 

Tenho falado sobre o monismo,uma característica típica do pensamento filosófico antigo,que passou para o século XIX,através do XVIII.Na verdade,nasceu com o jusnaturalismo de Cicero e foi característica do pensamento até a relatividade.

Num dos trechos fundamentais da sua Crítica da Razão Dialética,livro que passo a analisar a partir de hoje,Sartre critica o monismo,com as mesmas palavras(ou semelhantes),às minhas em outros artigos anteriores.

Mas é tudo muito lógico para quem conhece filosofia e a estuda com frequencia ,sem preconceito cientificista.Este preconceito,ou limitação de época,localiza numa coisa só a causa do Ser.É uma incrustação da metafísica na ciência ,mistura da qual nem a dialética escapou.

Diz Sartre:

Deve-se provar que a negação de uma negação
pode ser uma afirmação, que os conflitos – dentro de uma
pessoa ou de um grupo – são a força motriz da História, que
cada momento de uma série é compreensível com base no
momento inicial, embora irredutível a ela, que a História
afeta continuamente totalizações de totalizações, e assim
por diante, antes que os detalhes de um método analíticosintético e regressivo-progressivo possam ser
compreendidos.”

Mas esses princípios não podem ser tomados como
garantidos; na verdade, a maioria dos antropólogos
(antropólogos) os rejeitariam. É claro que o determinismo
dos positivistas é necessariamente uma forma de
materialismo: seja qual for o seu assunto, dota-o com as
características da materialidade mecânica, ou seja, inércia e
causalidade externa. Mas normalmente rejeita a
reinteriorização dos diferentes momentos em uma
progressão sintética. Quando vemos a unidade de
desenvolvimento de um único processo, os positivistas
tentarão mostrar vários fatores externos independentes dos
quais o evento em consideração é o resultado. O que os
positivistas rejeitam é um monismo de interpretação. Veja,
por exemplo, o excelente historiador Georges Lefebvre. Ele
critica Jaures por afirmar ver a unidade de um processo nos
eventos de 1789. Como apresentado por Jaures, 1789 foi um
evento simples. A causa da Revolução foi o
amadurecimento do poder da burguesia, e seu resultado foi
a legalização desse poder. Mas agora é sabido que a
Revolução de 1789 como um evento específico exigia um
conjunto verdadeiramente anormal e imprevisível de causas
imediatas: uma crise financeira agravada pela guerra na
América; desemprego, causado pelo tratado comercial de
1786 e pela guerra no Extremo Oriente; e, finalmente, altos
preços e escassez provocados pela safra pobre de 1788 e
pelo decreto de 1787 que esvaziou os celeiros.(é o caso de
wiitgenstein e as causas.não tem uma causa única,não
existe isto).
Quanto às causas subjacentes, Lefebvre enfatiza o fato de
que sem a revolução aristocrática abortiva, que começou em
1787, a revolução burguesa teria sido impossível. Ele
conclui: "A ascensão de uma classe revolucionária não é
necessariamente a única causa de sua vitória; nem sua
vitória é inevitável; nem precisa levar à violência. Neste
caso, a Revolução foi iniciada por aqueles a quem foi
aniquilar e não por aqueles que lucraram com ela, e ... não
há razão para supor que os grandes reis não poderiam ter
verificado o progresso da aristocracia no século XVIII.”

Não quero analisar este texto, pelo menos no momento.
Certamente, Lefebvre pode estar certo em dizer que a
interpretação de Jaures é simplista, que a unidade de um
processo histórico é mais ambígua, mais 'polivalente' do
que ele diz – pelo menos em suas origens. Pode-se tentar
encontrar a unidade das causas díspares em uma síntese
mais ampla, para mostrar que a incompetência dos reis do
século XVIII foi efeito tanto quanto a causa, etc., para
redescobrir circularidades, e mostrar como o acaso
está integrado nesses dispositivos de "feed-back" que são os
eventos da História; e que é instantaneamente incorporada
pelo todo para que pareça a todos como uma manifestação
de providência, etc. Mas isso não é o ponto. Não se trata
nem mesmo de mostrar que tais sínteses são possíveis, mas
de provar que são necessárias: não qualquer particular, mas
em geral que o cientista deve adotar, em todos os casos e
em todos os níveis, uma atitude totalizante em relação ao
seu assunto.”

Este último parágrafo é bem elucidativo do que queremos dizer quanto ao monismo.Se escudando nos positivistas ,que rejeitam um único método de interpretação,Sartre afirma a necessidade de pluralidade de causas e de compreensão do porque ela é essencial.

Citando Georges Lefevbre,em seu livro sobre “ Revolução Francesa”,Sartre critica o simplismo monista de Jaurès,para quem a Revolução Francesa significou a vitoria da burguesia que passou a ditar os critérios da politica(o que nós aprendemos no segundo grau...).

Sartre afirma que tal critica não é meramente capricho e que é algo mais que exigivel,principalmente na dialética,que é um princípio hegeliano(marxista)monista.

E continua:

Não esqueçamos que os antropólogos nunca rejeitam o
método dialético absolutamente. Mesmo Lefebvre não
formula uma crítica geral de cada tentativa de totalização.
Pelo contrário, em suas célebres palestras sobre a
Revolução Francesa, ele abordou as relações entre a
Assembleia, a Comuna e vários grupos de cidadãos, de
agosto a agosto, como dialético; ele deu ao "Primeiro
Terror" a unidade de uma totalização em desenvolvimento.”

Mas Lefebvre se recusou a adotar a atitude totalizadora de
forma consistente. Em resposta às nossas perguntas, ele
sem dúvida diria que a História não é uma unidade, que
obedece a leis diversas, que um evento pode ser produzido
pela pura coincidência acidental de fatores independentes,
e que pode, por sua vez, desenvolver-se de acordo com
esquemas totalizantes que são peculiares a ela. Em suma,
Lefebvre simplesmente diria que rejeita o monismo, não
porque é monismo, mas porque parece-lhe a priori.”
E conclui:

A mesma atitude tem sido formulada em outros ramos do
conhecimento. O sociólogo Georges Gurvitch descreveu-o
com muita precisão como hiper-empirismo dialético. Este é
um neopositivismo que rejeita cada a priori; nem o apelo
exclusivo à Razão analítica, nem a escolha incondicional da
Razão dialética podem ser justificadas racionalmente.
Devemos aceitar o objeto como ele é e deixá-lo se
desenvolver livremente diante de nossos olhos, sem
prejulgar que tipos de racionalidade encontraremos em
nossas investigações. O objeto em si dita o método, a forma
de abordagem. Gurvitch chama seu hiper-empirismo de
"dialético", mas isso dificilmente importa, já que tudo o que
ele quer dizer é que seu objeto (fatos sociais) se apresenta à
investigação como dialético. Seu dialético é, portanto, uma
conclusão empírica. Isso significa que a tentativa de
estabelecer movimentos totalizadores, reciprocidades de
condicionamento – ou, como Gurvitch diz corretamente,
reciprocidades de 'perspectivas' – etc., é baseada em
investigações passadas e é confirmada pelos presentes.
Generalizando essa atitude, pode-se, penso eu, falar de um
neo positivismo que descobre em uma determinada região
da antropologia agora um campo dialético, agora um campo
de determinismo analítico, e agora, se a ocasião exige,
outros tipos de racionalidade.
Dentro dos limites de uma antropologia empírica essa
desconfiança do a priori é perfeitamente justificada.
Mostrei em O Problema do Método que isso é necessário
para que um marxismo vivo incorpore em si mesmo as
disciplinas que até então se mantiveram externas a ele. No
entanto, o que quer que possa dizer sobre isso, essa
incorporação deve consistir em revelar sob o determinismo
clássico de determinados "campos", sua conexão dialética
com o todo ou, onde estamos lidando com processos cujo
caráter dialético já é reconhecido, ao revelar essa dialética
regional como a expressão de um movimento totalizante
mais profundo. No final, isso significa que somos
confrontados mais uma vez com a necessidade de
estabelecer a dialética como o método universal e o direito
universal da antropologia. E isso equivale a exigir que os
marxistas estabeleçam seu método a priori: quaisquer que
sejam as relações investigadas, nunca haverá o suficiente
deles para estabelecer um materialismo dialético. Tal
extrapolação – ou seja, uma extrapolação infinitamente
infinita – é radicalmente diferente da indução científica.”
Sartre concorda com estas afirmações de Lefebvre e acrescenta o positivismo sociológico de Gurvitch,para quem o objeto é quem dita o método.Mesmo o método dialético hegeliano/marxista é um a priori ,ainda que apreendendo supostamente o movimento do real(dialético supostamente),uma vez que segue leis da razão dialética próprias,PRÉ-DADAS .

Na parte inicial da “Crítica da Razão Dialética”, “Questão de Método”,ele propõe os “Conjuntos Práticos”,as totalizações infinitas,”infinitamente infinitas”,seguindo o modelo de Gurvitch ,de “ empirismo dialético”,pelo qual o cientista organiza dialéticamente os dados do real empirico,o que nada mais é do que a concepção atribuída ao mesmo Sartre ,da dialética como produção da consciência subjetiva,que,segundo Gurvitch foi inventada por Proudhon(Sartre não reconhece,mas foi Proudhon).

Estes conjuntos são totalizações não do real todo,mas de seções do real(Luckacs devia ter entendido isto),porque a dialética não abarca o movimento do real todo.O tempo e o real são plurais,não monisticos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pluralidade da dialética

 

Quando eu lecionava nas universidades particulares do Rio de Janeiro sempre que mencionava a dialética havia uma grande curiosidade.

E é assim até aos dias de hoje,para quem não conhece todos os descaminhos da dialética ,de Hegel ,do inicio do século XIX,até o fim do comunismo,que,para muitos a sepultou.

Nada destas últimas afirmações é verdade absoluta:a dialética mudou,mas não acabou.O que acabou foi aquela concepção monista dando conta de que o princípio do movimento se funda nas suas leis universais.Predomina hoje a visão de Sartre para quem ela é produto da consciência.

Mas mesmo esta contribuição de Sartre não é só dele,mas possui antecipações de um século ou mais.

A dialética existe desde Platão e ela apresenta múltiplas formas ao longo da história.A visão de Sartre tem como antecipador Proudhon,que retirou o seu modo de ver,das antinomias da razão de Kant e sua “ Crítica da Razão Pura”,tido como o fundamento de Sartre em sua “ Crítica da Razão Dialética”.

Este mesmo Kant que tantas vezes foi trazido aos debates para fundamentar o fim da dialética ou a sua inexistência desde o inicio,possui uma dialética oposicional,antinômica.

Georges Gurvitch falando sobre esta figura chave de Proudhon,cita as seguintes formas de dialética,propostas por diversos autores:

A dialética em Platão;a dialética em Plotino,um neo-platônico;a dialética mistica negativa;a dialética da negação radical de Kant;a dialética de Fichte;a dialética de Hegel;a de Proudhon;de Marx e de Sartre.

Eu,no entanto,acrecento Schelling,baseado em Garaudy,que mostra ser ele o antecessor imediato de Hegel.

Então a visão de que a dialética da natureza,provinda de Marx e Engels,é a “ dialética científica”,não procede.

Analisaremos estas dialéticas me artigos próximos.



segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Massacrados de todos os países uni-vos IV

 

Porque trato deste tema

Na medida em que ,como tantos,pago impostos,trabalho,me sinto no direito de protestar em nome de quem está excluído e sofrendo.Em vista de o pobre hoje ser mais militante fica dificil ter uma proximidade com ele,mas o que me motivou a esta proto-literatura foi outra coisa:recuperar este sentido de compaixão,sem choradeira.

Nós vivemos numa época (pós e a partir de Nietzsche)em que tudo o que acontece deve exigir de nós capacidade de luta,de resposta.Tudo o que atrapalha este modo de agir é coisa de fresco,de chorão,que não sabe o que fazer.

Eu não matei Joanna D´arc é o mote para inquinar esta choradeira do que ela é:choradeira.Porque chorar pelas inúmeras pessoas injustiçadas e sofridas ao longo do tempo e da história?

A minha resposta a esta pergunta é que não só porque o sofrimento continua,mas porque mesmo se vivessemos no pais de cocagne,é preciso lembrar de como chegamos nele depois de tantas injustiças.

Aprendi com Dostoievski que o passado condena.Não há ruptura entre o passado e o presente e daí para o futuro.Não há porque estabelecer uma ruptura no pensamento humano.A lembrança do sofrimento,a sua rememoração evita os verdadeiros demônios da humanidade,os previne:indiferentismo,desconsideração com o outro,falta de compaixão com os limites da humanidade.

O culto do sofrimento é perigoso,deixa traumas,mas a sua lembrança na hora do reconhecimento dos limites é essencial para que estes não sejam ultrapassados.Neste sentido lembrá-los,como São Paulo recomenda aos corintios quanto ao sofrimento de cristo,é uma forma de evitar que eles traumatizem,porque não são reais e simultâneamente para evitar o esquecimento que pode reviver o sofrimento.

A ruptura do experiência humana,o esquecimento do passado é de todo jeito uma possibilidade de repetição de erros e violências ,como disse George Santayanna e até certo ponto Dostoievski.A ruptura é psicopática.

É psicopática e elimina a discussão sobre a reponsabilidade de quem se beneficia daquilo que está errado,daquilo que foi errado.Este conceito vai ser retomado em outros artigos.



quarta-feira, 7 de outubro de 2020

o esquema básico do pensamento hegeliano

O que me chama a atenção em Freud

 


Resolvi retornar a este tema porque muita gente não compreende o que quero fazer com Freud e fica me cobrando um conhecimento técnico que eu não tenho e não procurei ter.É claro que para estudar Freud há que conhecer o seu pensamento e a sua prática médica,mas os limites entre isto e o que eu pretendo devem estar bem claros para quem me lê,a fim de evitar incompreensões.

Conforme tenho dito inúmeras vezes o que me fascina em Freud e o que o distingue do que veio antes dele ,é ter mostrado a inadequação do homem,do sujeito ,com a realidade.

Eu não vi em lugar nenhum este tipo de conceituação.De modo geral as pessoas se referem a isto como “a insuficiência do real”:toda a tradição do pensamento até Freud(com algumas fraturas eventuais)buscava uma explicação suficiente para todos os problemas.Finda a investigação encerrava-se o processo de conhecimento.Embora no Freud estritamente médico possa se fazer esta afirmação,a sua influência sobre o processo de investigação e sobre a vida não se resume nele,porque o inconsciente,por sua definição,é algo permanentemente prescrutável.

Pela primeira vez na História há uma fratura permanente na racionalidade.O mistério do conhecimento para a razão era só um momento prévio para a sua inevitável vitória explicativa.Com o inconsciente este momento é permanente,extensivo e marca uma posição limitadora diante da razão.

Então eu não começo senão depois que acaba a terapia.Solucionada a neurose ,a permanência desta dicotomia razão/inconsciente é o que me impulsiona.E o que surge da terapia desta dicotomia é o que me interessa.O que a perpassa também.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A dialética não é universal,nem obrigatória

 

Todos conhecem a discussão sobre a natureza da dialética e não há porque retorná-la aqui.Basicamente duas posições giram em torno dela:que a dialética é objetiva ,posição do marxismo e que a dialética é produto da consciência,própria de um proto-marxista ,Sartre.

A vitória coube a esta última posição e neste sentido não há como falar que a dialética é a estrutura da realidade,porque não é.

Mais do que isto as consequencias são muitas para a compreensão da história da filosofia, a partir do iluminismo alemão.A dialética foi vista sempre como o fim da metafísica,porque ela descobrira as leis do movimento,o qual não pode ser abarcado por nenhum sistema fechado.Esta teria sido a maior contribuição da dialética para o mundo,se ela fosse realmente o movimento do Ser.

Com o tempo,com os avanços da ciência ,esse monismo ruiu.O tempo é multifacetado,como o movimento ,e a única de forma de encarar a visão de Hegel e da dialética como algo moderno,foi estabelecida por Habermas ao dizer que ao ser colocado no centro do mundo,o movimento exigiu a recolocação permanente dos seus fundamentos.O movimento se repropõe permanentemente.

Houve uma volta a Tales:a dialética não é o principio de tudo,como a água em Tales,mas é um princípio em filosofia,no pensamento, e este é o da constante auto-atualização,porque não há mais barreiras(medievais[tempo de superação do passado]).Não há,em princípio ,modelos intocáveis.Em princípio por que a dialética se propôs como modelo ,sem notar esta contradição,entre movimento e modelo.

O modelo ou está submetido ao tempo ,ao movimento e não o é mais,ou sendo modelo é falso,imposição,ilusão(e um monte de coisas a se analisar separadamente),pois nada é absoluto.

Mesmo aquilo que tarnscende as épocas,os momentos,numa aufhebung,mudar conservando,ambos os lados,a mudança e o que fica,sofrem influência da passagem.

No plano subjetivo,psicológico,este transcendente é percebido de várias formas,de várias maneiras.Um exemplo:a eternidade existe de diversas maneiras ao longo do tempo,embora o seu conceito seja transepocal.

Assim sendo,como modelo proposto ,discurso explicativo ,a dialética é metafísica,no nexo Hegel/Marx.

A dialética não é universal,como metafísica,modelo total de explicação e nem,ipso facto,obrigatória,necessária,mas é um método de prospecção de relações contraditórias,no mais amplo sentido desta expressão ,capazes de produzir um “ terceiro incluído”,um algo a mais ,diferente da metafísica,que se pretende não tocar e não ser tocada pelo real.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

formação da dialética em hegel

 

Analisando o livro de Roger Garaudy “Dieu est mort” nós vemos que existe um desenvolvimento na filosofia alemã que redunda em Hegel e sua dialética.Qual é a herança que Hegel recebe e transforma?

Nós temos que ter em mente que seu caminho é o da subjetividade autônoma para compreender o mundo.A subjetividade começa na História de diversas maneiras,através da contribuição de vários autores e personagens,o primeiro deles Lutero e a reforma protestante.

Aqueles que lêem os meus artigos sabem o que digo sobre Lutero e a reforma protestante.Muita gente,principalmente no radicalismo de esquerda,pensa que com isto eu defendo a figura individual de Lutero.É o famoso “ espirito de partido” do comunismo ortodoxo que distorce as coisas.Eu me reporto ao significado histórico da figura,assim como faço com Napoleão.Napoleão representa o avanço do capitalismo,que em relação ao passado medieval configura progresso.

Algo simile se dá com Lutero: conforme as análises e interpretações de Nietzsche,quando o reformador afirma em Worms “ penso assim,não posso agir de outro modo”,está fundando a subjetividade moderna,o individualismo moderno,que aponta o direito e a liberdade de se posicionar diante do mundo.Garaudy atribui a este nascimento do subjetivismo o nascimento do monismo,mas são coisas diferentes(1).



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Lukacs e o problema nacional

 

Quando da Copa do mundo de 74,a Polônia reapareceu para o mundo com um time muito bom,em que despontavam Lato e Deina.Eu era comunista aos 12 anos e defendia a ética destes jogadores,pensando que o que acontecia lá no país deles era uma evolução a favor do socialismo.Não eram jogadores profissionais,mas operários predominantemente ,que viviam deste trabalho produtivo e não do futebol,mera diversão.

Quatro anos depois,eu tinha 16 anos e entrei no segundo grau e fiquei chocado que aqueles mesmos poloneses evoluídos fizessem uma greve contra o governo comunista.

Não havia de forma alguma evolução no sentido do socialismo,mas um falsa impressão,vendida pelos comunistas e não consentânea com a realidade.

Se o leitor acompanhou o meu artigo anterior vai ver que não houve a prevista desalienação do trabalhador sob o regime de orientação comunista.O operário polonês continuou católico,reproduzindo a “forma alienada de consciência social” e a usando para vencer seus governantes ilegitimos.

Mas diferentemente do que falei no artigo anterior aqui se trata do problema da nação,do comprometimento deste trabalhador e de outros no leste europeu (húngaros)com a nação.

Ainda me lembro de muito comunista se lamentando diante da classe operária abrindo mão do seu direito ao socialismo em favor do conceito burguês de nação,onde exploradores e explorados vivem numa falsa igualdade.

A afirmação de Marx ,seguida por Lukacs,de que “ a classe operária não tem pátria” caiu por terra(alguns radicais do Brasil aí tinham que entender).

O puro reconhecimento das necessidades da classe principal e decisiva não elimina os outros setores de classe,as outras necessidades,culturais,identificadas erradamente com a classe média, mas que faziam parte também dos desejos dos operários,o que não se coadunava com o regime totalitário.

Logicamente muitas explicações para relativizar estas conclusões foram feitas:sabotagem externa;má condução das lideranças;traição da classe operária.mas quando o regime estava de pé a vitória da desalienação era tida como eterna ,num assomo de verdade religiosa no socialismo,que não se sustentou.



domingo, 6 de setembro de 2020

A questão de classe em Lukacs

 

Marx nunca afirmou que ipso facto,havendo um regime socialista a alienação desapareceria,muito menos que suas condições estariam dadas.

Os descaminhos da revolução russa puseram em xeque esta suposta verdade dita por Marx.Como ficou evidente que no minimo havia uma dúvida quanto à desalienação no socialismo real,a esquentar a cabeça dos teóricos,era preciso tomar uma decisão quanto a isto.

Naturalmente o regime stalinista da URSS vendia a ideia de que a desalienação estava em curso ,porque o regime soviético expressava as necessidades dos trabalhadores e as supria.Então o mundo da necessidade tinha sido superado e substituido pelo da liberdade,como prevera e preconizara Marx.Todo o pensamento do socialismo real justifica a sua vida cotidiana com isto:a certeza de ter o essencial para viver torna a vida tranquila e cria tempo livre para aproveitá-la.

E naturalmente Trotsky e seus seguidores ,exilados pelos stalinismo, mostraram o absurdo desta igualação com o pensamento de Marx:”o estado de todo o povo” da constituição de 37 na URSS só ocultava pela força a luta de classes ,que continuava subsumida,como mostrou o trostskista Charles Bettelheim em “ As lutas de Classe na URSS”;o próprio Trotsky afirmava que a hegemonia da classe operária na URSS contrariava Marx porque o comunismo era para acabar com todas as classes e não manter uma só,que seria inevitavelmente opressora.

Mas o que legitima a situação na URSS e confunde todo o debate é a posição de Lukacs,baseada em “ História e Consciência de classe”,em que ele condiciona a consciência dos indivíduos ,vistos como trabalhadores e atores sociais,à sua posição objetiva na classe,por sua vez definida dentro do modo-de-produção.

Na medida em que o estado reconhece a classe operária,única capaz de acabar com todas as outras(sem violência em princípio),a sua consciência é decisiva para a desalienação:a consciência da necessidade satisfeita pelo estado transforma-se em liberdade.

Contudo o que Marx entendia como base para o “ reino da liberdade” não era uma “ democracia de trabalhadores” como dizia o meu professor Roland Corbisier;nem era muito menos um “ estado de todo o povo”.Era um regime que libertava o homem do trabalho exaustivo;não um trabalho para outrem mas para a comunidade humana toda,que usufruiria de todos os bens a qualquer tempo:aí sim haveria tempo livre,a liberdade.O trabalho em Marx é uma mediação da capacidade criativa do ser humano.

Ernst Mandel ,em seu “ Formação do pensamento de Marx”,último capitulo,como trostskista, aprofunda as ideias de seu mestre,mostrando que o sistema de distribuição no socialismo real privilegiava,não supria as necessidades e isto,digo eu,é óbvio para um país isolado,dependente do mercado capitalista e caracterizado por...trabalho exaustivo e inconclusivo para produzir a abundância necessária para a distribuição equitativa,constante e sem privilégios dos bens produzidos.

E mais:com a desalienação,as formas alienadas de consciência social como a religião(entre outras[ciência burguesa])desapareceriam.

Eu tinha 12 anos quando assisti ,como pequeno comunista, a Copa de 74 na Alemanha Ocidental,em que a Polônia reapareceu para o mundo após muitas décadas.E nas entrevistas dos jogadores loas ao socialismo,à despreocupação com o dinheiro.Os jogadores e o técnico contavam que viviam de seus trabalhos e empregos especificos e não do futebol.Recebiam presentes,mas nada de dinheiro injusto ,resultante da exploração.A religião ,na entrevista, não foi abordada,mas estava subentendida.

Quatro anos depois ,em 1978,quando tinha 16 anos e estudava no Arte e Instrução espoucaram as greves de Gdansk e todas aquelas ilusões do menino cairam por terra.E as de Lukacs,Stalin....



domingo, 23 de agosto de 2020

Porque a minha visão de Heidegger é crítica

 

Quando eu era estudante na especialização,uma professora,em nome de Heidegger,afirmou que “ o homem não é isto ou aquilo,mas sentido” eu disse que não aceitava aquilo.Não se há de extrair sentido sem referência a essências,mesmo que não substantivas,aristotélicas.Dizer que a vida é sentido não tem sentido porque o que é sentido?Sentido na humanidade?

Relembrando, o ôntico se refere ao modo de ser dos entes ,a sua essência definidora,o dasein,o isto,o ser-aí;o ontológico se refere ao estudo filosófico destes entes.Um exemplo:o meu modo de agir como professor é ôntico;o estudo da pedagogia é ontológico.

O que contestei na fala da professora da uerj é que o sentido não se apura em geral,mas ligado às essências.É lógico que o estudo dos entes não é condição de existência deles,então a manifestação dos entes na busca de um sentido,o por-se a maneira de algo(essência) não é senão uma interligação de diversas manifestações ,a partir de um modo especifico,que orienta este sentido e é responsável por sua apuração.Por sua existência(ente).

Lógico que isto se aplica ao homem,não às coisas,aos animais.Neste plano digamos assim, nós podemos analisar o problema do ôntico e do ontológico.Existem ,segundo Heidegger,vários tipos de entes ,listados por Marilena Chauí em seu livro Convite à Filosofia”:

1. os entes materiais naturais que chamamos de coisas reais (frutas, árvores,
pedras, rios, estrelas, areia, o Sol, a Lua, metais, etc.);
2. os entes materiais artificiais a que também chamamos de coisas reais (nossa
casa, mesas, cadeiras, automóveis, telefone, computador, lâmpadas, chuveiro,
roupas, calçados, pratos, talheres, etc.);
3. os entes ideais, isto é, aqueles que não são coisas materiais, mas idéias gerais,
concebidas pelo pensamento lógico, matemático, científico, filosófico e aos quais
damos o nome de idealidades (igualdade, diferença, número, raiz quadrada,
círculo, conjunto, classe, função, variável, freqüência, animal, vegetal, mineral,
físico, psíquico, matéria, energia, etc.);
4. os entes que podem ser valorizados positiva ou negativamente e aos quais
damos o nome de valores (beleza, feiúra, vício, virtude, raro, comum, bom, mau,
justo, injusto, difícil, fácil, possível, impossível, verdadeiro, falso, desejável,
indesejável, etc.);
5. os entes que pertencem a uma realidade diferente daquela a que pertencem as
coisas, as idealidades e os valores e aos quais damos o nome de metafísicos (a
divindade ou o absoluto; a identidade e a alteridade; o mundo como unidade, a
relação e diferenciação de todos os entes ou de todas as estruturas ônticas, etc.).”


Num passo seguinte a professora(e Heidegger) entra naquilo que considero a base do que eu estou dizendo aqui:

No caso dos entes ideais, os conceitos ontológicos são bastante diferentes. Em
primeiro lugar, tais entes não são coisas reais – este cavalo é uma coisa real, mas
a idéia do cavalo não é uma coisa, é um conceito e existe apenas como conceito.
Em segundo lugar, não causam uns aos outros, mas são entes que possuem uma
definição própria, podendo relacionar-se com outros – a idéia de homem não
causa a de cavalo, mas podem relacionar-se quando o historiador, por exemplo,
mostra a diferença entre sociedades cujo exército só possui a infantaria e aquelas
que inventaram a cavalaria; um círculo não causa um triângulo, mas podemos
inscrever triângulos num círculo para demonstrar um teorema ou resolver um
problema.”
Se eu digo “ Sou professor”,isto não me torna um e nem define o que é o professor,mas a conexão entre este ente ideal e a prática,orientada afinal por ele,existe a determinar o seu comportamento como tal,a separá-lo de outros e a definir como é vida de uma pessoa,um ente real .O exemplo de Marilena é o historiador ,o matemático,mas não se pode negar esta verdade.

Ela põe um exemplo assim:”Pedro acendeu a luz”,a ontologia pergunta:” o que é o conceito de luz?”,o historiador pergunta;”quando e como se formou o uso pratico da eletricidade?” e o cientista físico:” o que é a luz?”,mas o ato em si ,digo eu,de acender a luz tem um significado de ente ,daquilo que “ se põe à maneira de algo”.Conectado com outros atos da vida cotidiana,quer dizer atos causados pela decisão do sujeito,do ente real do sujeito,que,por isto,expressam um sentido .Acaso estes atos não possuem uma essência?O ôntico e o ontológico não estão interligados?Isto não prova que não existe ruptura total do discurso?Que a experiência une estes dois lados?

Se um professor mata um aluno,ele é um assassino,mas não deixa de ser um professor.Preso,deixa de ser.Quando sai da prisão volta a ser,se superar a culpa.Procurou um psicólogo,um cientista,um filósofo para entender a sua culpa e remissão e voltou a ser.

Critico esta pretensão da filosofia moderna,Heidegger inclusive,de buscar uma transcendentalidade,uma intocabilidade,como condição de construção de sentido.Certo existe o corpo,mas a experiência e os atos são aparentemente deixados de lado.

sábado, 8 de agosto de 2020

Ciência e Existência

 

O espermatozóide e a vida

Certa feita o cientista Faraday apresentou a sua experiência sobre o campo magnético diante do então primeiro ministro inglês Gladstone,que perguntou a ele “ para quê isto serve?”ao que o cientista respondeu:”para quê serve uma criança?”.

Existem pessoas que gostam de ridicularizar o conhecimento,como inútil para a vida(embora vivam cercados de conhecimento e de produtos do conhecimento) e principalmente conhecimentos pequenos,tidos como fúteis.

Esta semana foi feita uma descoberta deste tipo aí:o modo como o espermatozóide nada no sêmen não era como os observadores tradicionais,de microscópios antigos ,achavam.Leeuwenhoek,o holandês piedoso que os observou pela primeira vez(não sei como obteve a amostra para o seu microscópio...)deu a resposta,que valeu até esta semana:por isto um estratagema o espermatozóide fazia um movimento de corpo pendular no sêmen e conseguia se mover.Na última semana ,com um microscópio de última geração viu-se que nunca foi assim:o movimento de um saca-rolhas sobre um outro saca-rolhas,que se formava no liquido,explica como o espermatozóide tenta chegar ao óvulo.

E aí o leitor pode fazer a mesma pergunta do premier Gladstone.A experiência de Faraday foi a base dos futuros motores ,dentro dos carros,originando assim formas de tributação que ajudaram os governos(não necessariamente os povos).

A nova face do espermatozóide aparentemente não tem nada a oferecer,mas tudo o que se conhece,o que se sabe ,no tempo,pode vir a surpreender ,como no caso acima.

Do ponto de vista estritamente científico esta descoberta não tem ,ainda,consequencias tão importantes,mas do ponto de vista filosófico,confirma o que tenho dito frequentemente aqui sobre o papel da ciência e da existência:são duas coisas distintas,a vida e o conhecimento.

Nunca passou pela cabeça de ninguém que tal conhecimento sobre o espermatozóide pudesse mudar a vida de alguém,mas passou sim que a ciência poderia,o que é a mesma coisa.

O iluminismo francês,o século XVIII e principalmente o XIX venderam esta ideia de que o conhecimento científico,a descoberta das causas das coisas orientaria o comportamento individual e coletivo da humanidade.

Nós vemos num personagem do velho Maia de Eça de Queiróz esta visão prosperar e redundar no fracasso de sua família.Nós vemos na dialética dogmática stalinista a “crença”(o termo é este mesmo)de que quem detém o conhecimento da dialética está na frente dos outros.E nós vemos a antropologia nascer como justificadora do imperialismo e neo-colonialismo,entre outros exemplos.

Pensar que a ciência e o conhecimento são itens obrigatórios para a conduta psicológica do sujeito humano é colocá-la à mercê do próximo passo da ciência,da explicação seguinte.Não adianta supor que a ciência,assim entendida,será aplicada apenas ao que for conveniente,de acordo com seu objeto de investigação,porque,primeiro ela não será efetiva e segundo não o será por causa(olha aí)desta decisão de atar o sujeito ao que está fora de si,como princípio.Ainda que a aplicação da ciência ao problema existencial possa ,no imediato,dissolver eventuais problemas,a sua imposição como critério de vida,a submeterá ,como exigência,de fora para dentro,mesmo que problema algum apareça,porque ela já se colocou como essência da existência e dela não se separa mais.

Por isto Sartre diz que a existência precede a esssência.Do nascimento,onde não há consciência,até à maturidade e à morte,em que a essência surge,o que predomina é aquilo que já estava no berço: a existência.

Apesar de Kant dizer que o “ homem que sente saudades da infância jamais saiu dela”,assiste razão à Nelson Rodrigues ao afirmar que “ no adulto ainda está o menino,a criança”.

A relação entre a ciência a existência, para ser equilibrada tem que se dar assim:quando um problema atrapalha a existência a primeira é chamada;resolvido,a existência continua.

Freud admitia “ análise da vida toda”,” interminável”,mas isto não significa contradição e desequilibrio pois o analista sabe ou deve saber diferenciar e ajudar o paciente entre a vida e o conhecimento.E muitas vezes é por confundir estes dois termos que o paciente vai ao divã.

De qualquer maneira a ciência é explicação,mas a vida é a vida.Condicionar a vida ao conhecimento é o mesmo que condicioná-la ao espermatozóide.




quinta-feira, 30 de julho de 2020

Em quê Marx é filósofo


Sempre fui e sempre serei escrupuloso.E toda pessoa escrupulosa é justa.É claro que estas afirmações sobre o diletantismo do marxismo,que vieram da direita,causam espécie.Por isto tenho que retornar ao tema frequentemente,porque sei que este é o lado mais dificil,digamos,assim,do meu pensamento.A concordação com a direita,eu sabia,ia ser uma acusação inevitavel depois do que eu disse.
Mas o que disse foi fundamentado em outros autores,de esquerda,como Edmund Wilson,Coletti,Garaudy,André Gorz.O radicalzinho de esquerda que me ataca não tem estas leituras,pelo menos no Brasil.Mas na Europa isto é moeda corrente há décadas.
Na questão do método, Marx é profissional,mas mesmo assim é superado depois pela sociologia.No entanto as aplicações do método dedutivo,acrescido pelo conceito de totalidade,de Hegel,demonstram compreensão profissional do problema.
Profissional é,no entanto,aquele que compreende todo o processo do seu saber,quer dizer,as suas consequências totais,bem como as suas partes.
O exemplo histórico maior de profissionalismo que eu conheço e ,naturalmente ,admiro,é o de Shakespeare,que sabia dos textos,mas também da lâmpada,da coxia e de todos os elementos constitutivos da atividade teatral.
E Edmund Wilson ressalta que a compreensão dos textos dos filósofos não é completa por Marx e Engels.Eu disse:o que se entendia por filosofia na época deles não era bem uma filosofia no sentido profissional do termo e a abordagem de ambos de filósofos como Kant e Hegel não era até ao final.
Marx gostava de citar Balzac,cujo princípio fundador da Comédia Humana era “ se temos que criticar a sociedade,vamos criticá-la até ao fim”.Mas Marx não levou isto até ao final,porque nesta frase está contida uma verdade essencial:nesta crítica até ao fim está a crítica a si mesmo.
Um filósofo francês ,Paul Ricouer,chamou Marx,entre outros(Freud,Darwin),de “ mestre da suspeita”,porque ele punha para a contemporaneidade o fato de que os modelos explicativos tradicionais da sociedade moderna não são perfeitos,antes ocultam as falhas,descontinuidades e injustiças do real.
Contudo aquele que suspeita do mundo e dos outros,tem que entender duas realidades:que em termos éticos ,para desconfiar dos outros é preciso desconfiar,primeiro,de si mesmo e que ao desconfiar do mundo é lógico que aquele que desconfia está nele.
No caso da leitura de Hegel Marx podia ter ido mais longe na desconfiança em relação a ele e notado que o Espirito Absoluto não é uma entidade transcendental,mas o Ser em geral.
No caso de Kant há que se perdoar Marx porque só no final do século XIX se pode apreender outras possibilidades do seu pensamento,mas ainda assim era possível repudiar o agnosticismo como invectiva contra ele,porque nunca Kant afirmara a impossibilidade de conhecer,mas de conhecer tudo.
Assim eu concluo minhas reflexões sobre esta questão,a não ser que algo mais serio ou importante apareça.

domingo, 19 de julho de 2020

Da propriedade


Duas vertentes do pensamento ocidental orientam as discussões sobre o papel da propriedade:uma provém de Rousseau,outra de John Locke ,o pai do liberalismo e dos Estados Unidos.
Neste artigo tratarei do segundo,mas para que o contraste entre os dois ajude a compreensão,relembro a posição de Rousseau:no tratado “ Origem da desigualdade entre as línguas e os povos”,antecessor imediato do “ Contrato Social”,Rousseau atribui ao surgimento da propriedade os males da humanidade.Esta visão repercute evidentemente em Marx,que condiciona a sua utopia à sua supressão.
Locke ,em seu “Segundo Tratado do Governo Civil”,no capitulo evidentemente dedicado à “ Propriedade”define-a da seguinte maneira,em diversos itens:
26. Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele
para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens
para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente produz, assim como os
animais selvagens que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são produção espontânea da
natureza; e ninguém possui originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o resto da
humanidade, quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto, como foram dispostos para a
utilização dos homens, é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar deles, antes que se
tornem úteis ou de alguma forma proveitosos para algum homem em particular. Os frutos ou a caça que alimenta
o índio selvagem, que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe
pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter direito sobre eles, antes que ele
possa usufruí-los para o sustento de sua vida”.(
25. God, who hath given the world to men in common, hath also
given them reason to make use of it to the best advantage of life and
convenience. The earth and all that is therein is given to men for the
support and comfort of their being. And though all the fruits it naturally
produces, and beasts it feeds, belong to mankind in common, as they are
116/John Locke
produced by the spontaneous hand of Nature, and nobody has originally
a private dominion exclusive of the rest of mankind in any of them, as
they are thus in their natural state, yet being given for the use of men,
there must of necessity be a means to appropriate them some way or
other before they can be of any use, or at all beneficial, to any particular
men. The fruit or venison which nourishes the wild Indian, who knows
no enclosure, and is still a tenant in common, must be his, and so his—
i.e., a part of him, that another can no longer have any right to it before
it can do him any good for the support of his life.)”
“27. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um
guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer
que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre
que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso
acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum
em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros
homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode
ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em
quantidade e em qualidade.(
26. Though the earth and all inferior creatures be common to all
men, yet every man has a “property” in his own “person.” This nobody
has any right to but himself. The “labour” of his body and the “work” of
his hands, we may say, are properly his. Whatsoever, then, he removes
out of the state that Nature hath provided and left it in, he hath mixed his
labour with it, and joined to it something that is his own, and thereby
makes it his property. It being by him removed from the common state
Nature placed it in, it hath by this labour something annexed to it that
excludes the common right of other men. For this “labour” being the
unquestionable property of the labourer, no man but he can have a right
to what that is once joined to, at least where there is enough, and as good
left in common for others.)”.
  1. Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das
    árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto
    então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando
    os levou para casa? ou Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua
    propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele
    lhes acrescentou algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito
    privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que
    se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma? Poderia ser
    chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário,

    o homem teria morrido de fome, apesar da abundância que Deus lhe proporcionou. Sobre as terras comuns que
    assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras
    não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a
    deixou. E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos. Assim, a
    grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu
    tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de
    ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade
    sobre eles.(27. He that is nourished by the acorns he picked up under an oak, or
    the apples he gathered from the trees in the wood, has certainly appropriated them to himself. Nobody can deny but the nourishment is his. I
    ask, then, when did they begin to be his? when he digested? or when he
    ate? or when he boiled? or when he brought them home? or when he
    picked them up? And it is plain, if the first gathering made them not his,
    nothing else could. That labour put a distinction between them and common.)”
Resumindo:se o leitor ler estes textos,estas citações, vai perceber que Locke admite uma origem comunitária(comunista?)da propriedade,mas que considera que o trabalho de alguém que busca sobreviver com os bens em comum,legitima esta posse,porque ninguém na comunidade(diriamos hoje comunidade primitiva)tem o direito de impedir o esforço de sobrevivência,expresso no trabalho,obtido pelo trabalho.
É curioso como Locke não nega este direito aos indios(naturalmente ele pensava na colônia americana):
Os frutos ou a caça que alimenta
o índio selvagem, que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe
pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter direito sobre eles, antes que ele
possa usufruí-los para o sustento de sua vida.

(before they can be of any use, or at all beneficial, to any particular
men. The fruit or venison which nourishes the wild Indian, who knows
no enclosure, and is still a tenant in common, must be his, and so his—i.e., a part of him, that another can no longer have any right to it before it can do him any good for the support of his life.)”.
Locke ,como fundamento ideológico dos Estados Unidos,não autoriza a exclusão dos indios,como aconteceu na colônia.Conclui-se que os Estados Unidos nasceram como uma república clássica e democrática e se transformou internamente e externamente num império,com a marcha para o oeste.
O nosso assunto ,no entanto,não é este,mas a definição da propriedade.E como se conflita,desde o inicio do liberalismo,uma visão comunitária,biblica,que Locke reconhece,e a comunitária(comunista?):a comunidade não tem o direito de se interpor(como o estado não tem o direito)entre o esforço de trabalho,de sobrevivência,entre a pessoa e o produto deste seu trabalho.
Evidente que a perspectiva de Locke é abstrata.Ele não tem noção de como funciona a comunidade primitiva:nela a atividade individual não necessariamentes se conflita com os objetivos da comunidade,mas o que ele ataca e isto é importante e fundamental, é a condição individual diante de um estado,de uma sociedade,em que as distinções entre publico e privado já estão presentes.
Locke é protestante e cristaliza em seu pensamento todas as consequencias de “ revolução protestante”:esta distinção é uma delas.Não é mais como na comunidade primitiva ou mesmo na sociedade medieval,em que as relações são em grande parte(ou totalmente ,na comunidade primitiva)diretas,mas mediatizadas pela cada vez maior “ sociedade civil burguesa”.
Esta teia complexa cada vez maior,exige uma instância protetiva e legitimadora da atividade individual,do trabalhador abstrato de Locke.Porque sem isto este trabalhador se diluiria nesta teia,como a mosca presa pela aranha.
Face a esta ameaça é que Locke põe esta figura do trabalhador,do indivíduo,do ...cidadão moderno.
O comunismo,que se desenvolve no século posterior ao de Locke(que morreu em 1704)finge não se opor a esta concepção liberal,mas se opõe.
Na comunidade primitiva a interferência no trabalho é algo contraditório,por atentar contra a sobrevivência do grupo,mas os antropólogos mostram certas distinções injustas e quando a agricultura nasce,aumentando fundamentalmente o desequilibrio desta comunidade, a civilização e as classes estão prontas para criar a história dos desatinos que vemos até hoje e que Locke,como ser mortal,tocou em um determinado momento,respondendo do seu modo:a liberdade individual,como princípio absoluto,reconhecido pela “ comunidade”, é que a garante.Mas ele só põe o problema porque em todo o lugar o estado absolutista interfere e fica claro que esta interferência o prejudica,emquanto que a sociedade civil burguesa progride.
Em torno desta dicussão gira o debate sobre a propriedade,que foi centro do combate entre capitalismo e comunismo e que permanece de outras formas,como eu vou explicar no próximo artigo.


sábado, 27 de junho de 2020

A miséria do cientificismo:o fim do monismo

Há muito vinha intentando escrever este artigo sobre um pensador do século XIX,Ernst Haeckel,que,para mim,sintetiza em seu percurso todos os problemas atinentes ao cientificismo,à ideologia cientificista,cujo periodo de gestação e maior desenvolvimento foi o século XIX.E escolhi esta figura até para não escrever um texto meramente destrutivo,porque ele tem contribuições interessantes ,válidas,embora discutíveis.Isto demonstra a minha visão de que o conhecimento é construído no tateio,com os recursos que cada época oferece aos pesquisadores.Dependendo da situação nem tudo está errado no discurso explicativo ou alguma coisa se aproveita.
Eu ainda pretendo escrever mais sobre Haeckel e ideologia científica,mas neste texto trato do monismo.
Monismo filosófico e científico é uma das variações subsequentes do materialismo.Por ele entende-se que existe uma causa básica ,fundamental ,em tudo o que existe(o Ser),na physis.
Esta idéia,o monismo,é nova,mas ,na verdade,se escuda em uma tradição antiquíssima que remonta ao estoicismo,fundador do jusnaturalismo,pelo qual a natureza possui “ regras” imutáveis,trans-históricas,que serviriam de modelo para a cidade,para a sociedade.
Muito embora tenha havido,desde então,uma evolução na ciência,este esquema básico permaneceu.A recusa do jusnaturalismo se deu ou começou a se dar no século XVIII,com Kant mesmo.Os parlamentos,recém nascidos,como fautores da legislação e diante de uma realidade social muito mais complexa,notaram a não exigibilidade eventual do jusnaturalismo e que o homem podia constituir os seus próprios modelos.
Mas a ciência manteve o princípio subjacente de uma única causação.Ora pelo principio da dialética,em Hegel-Marx,ora pelo da “ unicidade da natureza” na física newtoniana e ora pela teoria da evolução,onde se localiza Haeckel.Esta sobrevivência do passado persiste.
O monismo cientificista que se forma em torno da evolução(termo já discutivel)desconhecendo este passado,deplora a filosofia,tida como especulativa,sem contato com a realidade,num procedimento típico do positivismo,ao qual Haeckel também se filia.
Fuçando aqui a minha biblioteca encontrei o texto que procurava ,há anos,para escrever este texto.Em “ A Origem do Homem”,fazendo uma crítica aos que pretendiam um retorno a Kant para salvar,apesar da evolução so dogmas da teologia ele diz que o “ que falat a Kant é o conhecimento do organismo humano,de sua anatomia e de sua fisiologia”.No passo seguinte ele inocenta Kant de ter estas “ falhas”,pelo fato de que na época do filósofo não existirem estas ciências senão em forma rudimentar.
Este trecho denota que para Haeckel,como a maioria em seu tempo,a filosofia e a ciência são vistas como uma coisa só,indefiníveis em sua essência particular,nebulosas.
Este tipo de confusão ficou até aos albores do século XX.As fraturas da ciência,expostas pela descoberta do átomo e formação da psicanálise,destruíram o princípio da causação única.A favor de Haeckel está a constatação de que a filosofia ,desde os gregos ,sempre misturou o princípio do discurso com a idéia de causa(Aristóteles).
Lênin em seu “ Materialismo e Empirocriticismo” embaralha estes planos,mas a filosofia e a ciência são coisas distintas e é culpa do monismo ignorar tal coisa,o que gerou intervenções de cada um destes saberes sobre o outro ,prejudicando a marcha do conhecimento.


sábado, 20 de junho de 2020

Alienação ,Marxismo e sociedade primitiva

A idéia comunista é recorrente na história da humanidade,como a de república,que é mais resistente do que a de monarquia.Outras idéias também,como religião,mais resistente do que todas as outras,aparecem.
Idéias recorrentes devem ser levadas em consideração,porque elas podem ter um adequação muito forte com a realidade e com a humanidade,expressando os desejos mais recônditos e profundos dela.
No mundo antigo havia sempre a memória de uma “ idade de ouro”,em que todos os homens eram iguais e partilhavam de tudo o que se produzia fraternalmente,o que nos grandes impérios,agressivos e violentos do mundo servia de esperança para as classes mais oprimidas.
Este sentimento de esperança constituiu uma das vias de passagem do mundo antigo para o mundo medieval,especialmente e quase que unicamente pelo cristianismo:nos dois primeiros séculos de nossa era o cristianismo  fora totalmente diferente da simbiose com o Império Romano construida depois por Constantino no século IV.Este cristianismo “ primitivo”,objeto de um estudo de Engels no final de sua vida(em que Engels compara o cristianismo ao movimento operário do seu tempo),se regia por este principio de uma idade de ouro,em que cada um atuava na comunidade cristã de sua cidade segundo a sua capacidade e entregava ,no espirito de Cristo,a quem mais precisava.
Todas as comunidades visitadas por São Paulo no ano II eram regidas por esta regra(Ambrogio Donnini,” História do Cristianismo”)o qual prosseguiu no século XVIII com o Iluminismo Alemão,Herder,Klopstock,Winckelman e Lessing.
Mas curiosamente ,antes do século XVIII,nos séculos XVI e XVII ,em que a ciência moderna surge no cenário da história moderna(por isso moderna),utopias são preconizadas ,a prometer a velha idade de ouro.Só que estas utopias usam um critério diferente daquele dos oitocentos,tirado do cristianismo:a sua visão do comunismo e do socialismo é mais imposta de cima para baixo,antecipando os problemas do comunismo e do socialismo nos tempos atuais.Isto porque a base de um comunismo avançado é uma capacidade exponencial de produção,só conseguida pela industria moderna.
Apesar da ciência ter se catapultado nos dois séculos anteriores não foi capaz de mostrar uma influência sobre a economia.Então as utopias como a de Bacon,More e Campanella parecem reproduzir a comunidade primitiva e o cristianismo,mas na verdade eles deturpam um pouco o significado destas duas experiências,numa antecipação da problemática que vai ocorrer no século XX com o “ socialismo real”.
A chave para entender estas incongruências é a escassez:num contexto de sociedade primitiva a falta de recursos impõe uma contenção e distribuição que todos da comunidade aceitam.
A civilização,como os historiadores mostram,aparece dentro de uma roupagem repressiva e de classes ,porque há que distribuir produtos do trabalho que superam em muito,pela introdução de novas técnicas,a população da comunidade,que já  não é mais primitiva,mas baseada numa cidade,numa civitas .
Na época da primeira onda industrial(1750) ficou claro que a produção poderia atingir niveis exponenciais ,muito acima do registro demográfico ,e as condições para uma distribuição equitativa se tornam viáveis.Esta foi a conclusão(uma delas)do iluminismo alemão.
Mas o que unifica toda esta problemática e é o tema deste artigo é que na comunidade primitiva os instrumentos de trabalho e a produção estavam à disposição de todos,não eram alienados como hoje,em que o trabalhador produz mas não necessariamente recebe  o que ofereceu à sociedade.
Aparentemente esta constatação que coincide com o pensamento marxista seria algo motivador de um processo transformador no mundo da propriedade,porque isto seria o lógico  a fazer.mas em próximo artigo,vou mostrar que no mundo moderno a questão da propriedade,dos meios de produção não é tão simples de resolver.

domingo, 14 de junho de 2020

Massacrados de todos os países uni-vos II

Como uma pessoa de bem deve ter compaixão nos dias de hoje?No passado não havia tantas barreiras  entre o homem e a compaixão,mas hoje...Contudo uma barreira permanece :o dinheiro,o diabo amarelo,que parece ser a medida e a reprodução do mal na vida da humanidade,seja sob que forma se apresente,de acordo com a causa de sua preeminência:exploração,mania,perversão etc,etc.
Pelos exemplos se percebe que a questão mais decisiva é a exploração.Existem muitas barreiras entre os homens,até principalmente  ele mesmo se coloca como barreira(ele está sob todas estas barreiras e é o seu fautor),mas ,fora as questões pessoais,singularíssimas,em termos coletivos,a questão do dinheiro é a da exploração.
Trato da questão do dinheiro e da exploração exatamente para ajudar o homem a tirar esta barreira.
Contudo,ao longo da história,  esta proposta de remover pura e simplesmente a mediação do dinheiro não significou necessariamente uma libertação.Pelo contrário o progresso dependeu muito de como se se relaciona com o mundo real e dentro dele o dinheiro.
Não foi outro o caminho de superação da idade média,pela idade moderna,com os seus espaços maiores de liberdade.Deste período em diante a humanidade procura estes espaços até alcançar a utopia,que é o momento e o lugar em que os espaços são totais(totalitários?),para todos.
A reforma protestante foi este movimento moderno,que,de dentro,numa nova relação com o dinheiro,criou as condições para mudanças materiais e espirituais,que refletem até hoje.
O movimento social,não necessariamente herdeiro da reforma e que se inicia na revoluções inglesas e no século XVIII,de modo geral,sempre repudiou a relação com o dinheiro,mesmo o marxismo que afirmava ser o comunismo um derivativo do desenvolvimento interno do capitalismo.A mudança viria por uma tomada de consciência da exploração e por uma consequente ação revolucionária redentora.
Neste contexto, incorporar na militância o sofrimento real dos pobres era parte do processo e  a base teórica o confirmava pelo conceito de "concreto de pensamento":é preciso acompanhar dialeticamente o movimento real da exploração,dividindo a realidade até aos seus minimos detalhes,a atividade do trabalhador no momento exato de sua atividade e daí sucessivamente.
Até aí vai a ciência.Mas o registro dos sofrimentos,da fome,dos vexames,da morte,cabe à arte ,à literatura,à denúncia jornalistica e do pesquisador.
Este é o esquema de abordagem do problema do sofrimento,dentro do processo politico de sua contestação,mas em periodos de aparente resignação e desbaratamento de critérios,há que adaptá-lo.
Quer dizer,desde sempre aconteceu o que acontece hoje:na luta politica a distinção entre ciência e arte não ocorre.Acusações de responsabilidade pela exploração;distorções no processo revolucionário,que favorece menos a pessoas do povo do que oportunistas,tudo isto se mistura em épocas de incerteza e confusão como a nossa atual,agravada pela eleição de um fascista.
Como proceder diante deste quadro,quando se é acusado de ser comunita ou fascista ao mesmo tempo,por pessoas emocionalmente perturbadas e sem fundamento cientifico para agir,mas premidas por exigências de ascensão ou expressão reprimidas?
Se eu escrevesse  há muitos anos atrás sobre a necessidade de compaixão e abnegação revolucionária em relação aos miseráveis,para lembrar Vitor Hugo,eu falaria sobre personagens da vida  cotidiana pedindo ajuda em meio à fome (e à pandemia)e me sentiria satisfeito,mas hoje mesmo estas pessoas são militantes e questionam a veracidade destas abnegação e compaixão.
Formou-se no mundo de hoje um hiato profundo entre aqueles que possuem alguma coisa e os que não têm(como dizia Josué de Castro)e a resposta à ajuda nem sempre é reciproca.
Diante disto não admito que me torne indiferente ao problema geral do sofrimento como um lembrete permanente de que tal situação deve ser objeto de uma luta constante até a sua superação,mas o modos e métodos pelos quais pretendo fazer esta denúncia ,esta narrativa,mudaram.O que fica,no entanto, é a emoção inevitável,que gera revolta,como algo que ninguém pode me tirar.
No próximo artigo continuo.