Duas
vertentes do pensamento ocidental orientam as discussões sobre o
papel da propriedade:uma provém de Rousseau,outra de John Locke ,o
pai do liberalismo e dos Estados Unidos.
Neste
artigo tratarei do segundo,mas para que o contraste entre os dois
ajude a compreensão,relembro a posição de Rousseau:no tratado “
Origem da desigualdade entre as línguas e os povos”,antecessor
imediato do “ Contrato Social”,Rousseau atribui ao surgimento da
propriedade os males da humanidade.Esta visão repercute
evidentemente em Marx,que condiciona a sua utopia à sua supressão.
Locke
,em seu “Segundo Tratado do Governo Civil”,no capitulo
evidentemente dedicado à “ Propriedade”define-a da seguinte
maneira,em diversos itens:
“26.
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão,
para que se servissem dele
para o maior benefício de sua vida e
de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos
homens
para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as
frutas que ela naturalmente produz, assim como os
animais
selvagens que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são
produção espontânea da
natureza; e ninguém possui
originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o
resto da
humanidade, quando estes bens se apresentam em seu estado
natural; entretanto, como foram dispostos para a
utilização dos
homens, é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se
apropriar deles, antes que se
tornem úteis ou de alguma forma
proveitosos para algum homem em particular. Os frutos ou a caça que
alimenta
o índio selvagem, que não conhece as cercas e é ainda
proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe
pertencer de
tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter
direito sobre eles, antes que ele
possa usufruí-los para o
sustento de sua vida”.(25. God, who hath given the world to
men in common, hath also
given them reason to make use of it to
the best advantage of life and
convenience. The earth and all that
is therein is given to men for the
support and comfort of their
being. And though all the fruits it naturally
produces, and beasts
it feeds, belong to mankind in common, as they are
116/John
Locke
produced by the spontaneous hand of Nature, and nobody has
originally
a private dominion exclusive of the rest of mankind in
any of them, as
they are thus in their natural state, yet being
given for the use of men,
there must of necessity be a means to
appropriate them some way or
other before they can be of any use,
or at all beneficial, to any particular
men. The fruit or venison
which nourishes the wild Indian, who knows
no enclosure, and is
still a tenant in common, must be his, and so his—
i.e., a part
of him, that another can no longer have any right to it before
it
can do him any good for the support of his life.)”
“27. Ainda
que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a
todos os homens, cada um
guarda a propriedade de sua própria
pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos
dizer
que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos
são propriedade sua. Sempre
que ele tira um objeto do estado em
que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a
isso
acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua
propriedade. Ao remover este objeto do estado comum
em que a
natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que
excluiu o direito comum dos outros
homens. Sendo este trabalho uma
propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele,
pode
ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos
quando o que resta é suficiente aos outros, em
quantidade e em
qualidade.(
26. Though the earth and all inferior creatures be
common to all
men, yet every man has a “property” in his own
“person.” This nobody
has any right to but himself. The
“labour” of his body and the “work” of
his hands, we may
say, are properly his. Whatsoever, then, he removes
out of the
state that Nature hath provided and left it in, he hath mixed
his
labour with it, and joined to it something that is his own,
and thereby
makes it his property. It being by him removed from
the common state
Nature placed it in, it hath by this labour
something annexed to it that
excludes the common right of other
men. For this “labour” being the
unquestionable property of
the labourer, no man but he can have a right
to what that is once
joined to, at least where there is enough, and as good
left in
common for others.)”.
Aquele
que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das
maçãs que retirou das
árvores na floresta, certamente se
apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é
sua. Pergunto
então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando
os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando
os levou
para casa? ou Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato
de apanhar não os tornasse sua
propriedade, nada mais poderia
fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o
bem comum; ele
lhes acrescentou algo além do que a natureza, a
mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu
direito
privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem
direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que
se
apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade
para agir dessa forma? Poderia ser
chamado de roubo a apropriação
de algo que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse
necessário,
o homem teria morrido de fome, apesar da
abundância que Deus lhe proporcionou. Sobre as terras comuns
que
assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do
direito de propriedade, sem o qual essas terras
não servem para
nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do
estado em que a natureza a
deixou. E este ato de tomar esta ou
aquela parte não depende do consentimento expresso de todos. Assim,
a
grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o
ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu
tinha direito a
eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão
ou o consentimento de
ninguém. O trabalho de removê-los daquele
estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade
sobre
eles.(27. He that is nourished by the acorns he picked up under an
oak, or
the apples he gathered from the trees in the wood, has
certainly appropriated them to himself. Nobody can deny but the
nourishment is his. I
ask, then, when did they begin to be his?
when he digested? or when he
ate? or when he boiled? or when he
brought them home? or when he
picked them up? And it is plain, if
the first gathering made them not his,
nothing else could. That
labour put a distinction between them and common.)”
Resumindo:se
o leitor ler estes textos,estas citações, vai perceber que Locke
admite uma origem comunitária(comunista?)da propriedade,mas que
considera que o trabalho de alguém que busca sobreviver com os bens
em comum,legitima esta posse,porque ninguém na comunidade(diriamos
hoje comunidade primitiva)tem o direito de impedir o esforço de
sobrevivência,expresso no trabalho,obtido pelo trabalho.
É
curioso como Locke não nega este direito aos indios(naturalmente ele
pensava na colônia americana):
“Os
frutos ou a caça que alimenta
o índio selvagem, que não conhece
as cercas e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e
lhe
pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém
mais possa ter direito sobre eles, antes que ele
possa usufruí-los
para o sustento de sua vida.
(before
they can be of any use, or at all beneficial, to any particular
men.
The fruit or venison which nourishes the wild Indian, who knows
no
enclosure, and is still a tenant in common, must be his, and so
his—i.e., a part of him, that another can no longer have any right
to it before it can do him any good for the support of his life.)”.
Locke
,como fundamento ideológico dos Estados Unidos,não autoriza a
exclusão dos indios,como aconteceu na colônia.Conclui-se que os
Estados Unidos nasceram como uma república clássica e democrática
e se transformou internamente e externamente num império,com a
marcha para o oeste.
O
nosso assunto ,no entanto,não é este,mas a definição da
propriedade.E como se conflita,desde o inicio do liberalismo,uma
visão comunitária,biblica,que Locke reconhece,e a
comunitária(comunista?):a comunidade não tem o direito de se
interpor(como o estado não tem o direito)entre o esforço de
trabalho,de sobrevivência,entre a pessoa e o produto deste seu
trabalho.
Evidente
que a perspectiva de Locke é abstrata.Ele não tem noção de como
funciona a comunidade primitiva:nela a atividade individual não
necessariamentes se conflita com os objetivos da comunidade,mas o que
ele ataca e isto é importante e fundamental, é a condição
individual diante de um estado,de uma sociedade,em que as distinções
entre publico e privado já estão presentes.
Locke
é protestante e cristaliza em seu pensamento todas as consequencias
de “ revolução protestante”:esta distinção é uma delas.Não
é mais como na comunidade primitiva ou mesmo na sociedade
medieval,em que as relações são em grande parte(ou totalmente ,na
comunidade primitiva)diretas,mas mediatizadas pela cada vez maior “
sociedade civil burguesa”.
Esta
teia complexa cada vez maior,exige uma instância protetiva e
legitimadora da atividade individual,do trabalhador abstrato de
Locke.Porque sem isto este trabalhador se diluiria nesta teia,como a
mosca presa pela aranha.
Face
a esta ameaça é que Locke põe esta figura do trabalhador,do
indivíduo,do ...cidadão moderno.
O
comunismo,que se desenvolve no século posterior ao de Locke(que
morreu em 1704)finge não se opor a esta concepção liberal,mas se
opõe.
Na
comunidade primitiva a interferência no trabalho é algo
contraditório,por atentar contra a sobrevivência do grupo,mas os
antropólogos mostram certas distinções injustas e quando a
agricultura nasce,aumentando fundamentalmente o desequilibrio desta
comunidade, a civilização e as classes estão prontas para criar a
história dos desatinos que vemos até hoje e que Locke,como ser
mortal,tocou em um determinado momento,respondendo do seu modo:a
liberdade individual,como princípio absoluto,reconhecido pela “
comunidade”, é que a garante.Mas ele só põe o problema porque em
todo o lugar o estado absolutista interfere e fica claro que esta
interferência o prejudica,emquanto que a sociedade civil burguesa
progride.
Em
torno desta dicussão gira o debate sobre a propriedade,que foi
centro do combate entre capitalismo e comunismo e que permanece de
outras formas,como eu vou explicar no próximo artigo.