quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A crueldade fraternal II artigos sobre o marquês de sade

 

Agora posso entender a partir deste texto do Marquês de Sade a amplitude do significado desta figura literária.O texto a que me refiro,cuja leitura desencadeou estes meus novos artigos,é intitulado exatamente como “A crueldade fraternal”,em que dois irmãos ,para “proteger” uma irmã de ser enganada por um oportunista,o matam,ferindo o seu coração.

Mas depois eu retorno a este texto.Este artigo é para complementar o anterior e eu fiquei de explicar o que tem a ver tudo com o Marquês de Sade.

Ora,o que caracteriza o verdadeiro sadismo,que ficou “comprovado” com os grandes carniceiros dos últimos 100 anos é que tudo o que se faz de violência é por um motivo nobre.

O que caracteriza o destruidor é a sua certeza ,é esta certeza de que faz o melhor.Faz o certo.

Destrinchar esta ominosa contradição foi sempre o fazer do Marquês de Sade,além de escandalizar de alguma forma a sociedade que o reprimia.

Agora sim nós podemos tratar do que realmente motivou o Maquês,Alphonse Donatien a se tornar este personagem:eu me referi ao fato de a França ser um país extremamente repressivo e não me lembrei de citar um caso,objeto de um texto famoso de Diderot.

Em “ A religiosa” Diderot romanceia o caso de uma menina forçada a ser freira contra a vontade.O sistema de vida da aristocracia era de modo a permitir que o aristocrata fizesse o que bem entendesse,mas ela era também observada,o dia todo.

Maria Antonieta quando acordava,não era no horário de sua escolha,mas aquele determinado e já um monte de serviçais em volta de sua cama estavam a postos,para limpá-la,vesti-la,verificar as suas necessidades e assim por diante.

As minhas pesquisas me conduziram à constatação,que se encontra num Norbert Elias por exemplo,sobre a formalidade das relações até a segunda guerra mundial.

No youtube vi videos em que grandes figuras da história tinham a sua vida acompanhada por todos.

Quando em 1954 Churchill ficou doente e saiu do hospital milhares de pessoas,principalmente mulheres, estavam do lado de fora olhando o traslado dele da ambulância para um carro pessoal que iria conduzi-lo à casa.

No caso do Marquês de Sade,esta formalização/imposição se deu da pior forma possível:Alphonse se apaixonou pela caçula de duas irmãs,mas a sua família e a da menina combinaram que ele deveria se casar com a mais velha.

Donatien tentou evitar esta imposição e já casado,quis raptar a caçula(Anne Prospére),tendo sido impedido.

Após verificar a impossibilidade de seu amor,a sua narrativa pessoal se tornou o que nós conhecemos hoje.

Estas narratinas a respeito do Marquês são muito duvidosas,por razões óbvias:ninguém quis efetivamente guardar as memórias destes acontecimentos.Mas existem biógrafos e autores que tratam dele ,tornado-o um dos mais polêmicos personagens da história e da literatura.

Alguns destes autores contestam todo este desenho em torno do seu grande amor,visto abaixo.Outros o confirmam.Outros dizem que a sua esposa legal se prejudicava,mas alguns que ela participava das orgias.

Anne Prospére o grande amor de Sade

No emaranhado de dúvidas que é a sua vida vamos nos ater a alguns temas,como o que eu já coloquei acima,o bem feito através do mal.Mas também a análise da experiência humana no limite do desejo e as relações com o racionalismo iluminista.As relações com Kant e com a republica.



A crueldade fraternal Artigos sobre o Marquês de Sade

 


 

Depois de muitos anos consigo trabalhar um pouco com a figura do Marquês de Sade,amenizando certos aspectos de sua trajétória e sem tratar de aspectos propriamente médicos.Até porque não sou médico...Quero dizer aspectos mais escabrosos,tratando apenas dos conceitos ,do significado deste “ personagem”,que é um pouco mais do que o escândalo que provocou.

Em momento nenhum eu pretendo mostrar aqui o Marquês como alguém distorcido pela tradição posterior a ele.Mas esta tradição provou a qualidade literária do Marquês e alguns fatos atribuidos a ele não são verdadeiros.

A começar pelo fato de que todas as trangressões são na sua maioria fruto da imaginação.O Marquês praticou poucas orgias concretamente porque logo foi preso por causa do caso dos “bombons cantaridados”,que eu vou comentar depois.

Passando a maior parte da vida em prisões e manicômios escreveu estas violências e brutalidades,como forma,entre outras razões ,de chocar e atacar a sociedade francesa,profundamente repressiva em termos sexuais inclusive.

Costuma-se explicar a eclosão da Revolução Francesa pelos desatinos da aristocracia ,e isto é verdade.Mas alguns destes desatinos são importantes para entendermos os atos do Marquês.

O sistema da aristocracia francesa em Versalhes foi uma montagem politica do absolutismo monárquico para controlar a aristocracia,que vivia se rebelando.Mas este esquema de controle extrapolou para os costumes,para a sociedade.Há um autor que compara o absolutismo monárquico ao culto à personalidade e ao totalitarismo do século XX.

Hannah Arendt,pelo menos,nas “Origens do Totalitarismo”,identifica nisto aí um dos momentos antecessores reais do que viria a ocorrer.

Uma invasão constante da privacidade ,os pais decidindo absolutamente o destino dos filhos e uma repressão sexual que começa com isto aí mesmo,que não permite que os filhos se casem com pessoas de sua escolha,mas com as de decisão única dos pais.

Eu vou explicar no próximo artigo o que isto tem a ver com o Marquês.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O dionisíaco e o apolineo em Nietzsche

 

Há dicotomias essenciais para explicar o ser humano,em geral.Uma delas é o dionisíaco e o apolineo,posta pelos gregos e interpretada de maneira criadora por Nietszche.Há outras como o Bem e o Mal,a Moral e a Ética,mas não trataremos delas aqui.

Este artigo continua o artigo anterior e organiza os meus estudos sobre esta que é uma das cabeças da contemporaneidade.

O que quero tratar aqui é da minha convicção de que Nietszche acompanhou os gregos nesta distinção.Como é sabido os gregos faziam uma distinção absoluta entre a sensibilidade e a razão.Em todos os setores da sociedade,a sensibilidade tem a ver com o que é baixo,sem explicação ou finalidade.Contudo com o desenvolvimento histórico do mundo grego figuras contrárias a esta atitude distintiva surgem a apontar um outro e novo caminho:hefaistos,deus do trabalho e dionisos deus do vinho,mas do bem estar geral,da alegria da vida.

Como tenho dito frequentemente, Nietszche não vê nas suas distinções e conceitos a respeito do além do homem,que a humanidade é uma experiência também.

Supostamente e como premissa os gregos clássicos privilegiavam a razão em detrimento da experiência da vida real e concreta e é isso o que Nietzsche pretende recuperar,acertadamente ,dentro do espirito de sua época européia,em busca da vida,como alternativa à ciência aplastante.

Mas no momento seguinte parece voltar ao erro que ele denuncia no grego clássico ao não incluir a razão no processo humano geral.

Nietzsche quer substituir a explicação,por uma linguagem que expresse sentido,que expresse a vida e a ação humana ,mais do que o processo de explicação das coisas,que no entender dele despotencializa o ser humano,que passa a se importar mais com o que está fora dele.Mais do que isto o ser humano racional se parte em dois ao submeter tudo o mais a este principio explicativo.Passe a se medir por ele.

No “livro do filósofo” Nietzsche delinea a sua visão do papel da linguagem exemplificando com as novelas espanholas,como Dom Quixote:em cada capitulo Cervantes antecipava de maneira simplificada e resumida o que iria acontecer.Os seus termos eram postos assim:”de como nosso herói chegou na taberna e aprontou um escarcéu”;” de como se tornou cavaleiro” e assim por diante.Sentenças pequenas e como tais significativas.

Mas mesmo nesta linguagem não explicativa não se rompe o vinculo,por minimo que seja,com a racionalidade,porque só é possível fazer esta escolha a partir de uma capacidade racional e com o instrumental dado por ela.

Neste sentido me parece que embora Nietzsche critique os gregos por esta distinção,ele não foge dela,apesar de não notar esta contradição.Isto sem falar no cotidiano em que não é simplesmente possível separar estas coisas.Em que isto tem a ver com a dicotomia?Próximo artigo.Para ser justo e para continuar no próximo artigo Nietzsche não continua com a distinão dos greos,valorizando aquilo que não é explicativo,mas no mundo real estes objetivos não são alcançáveis.Próximo artigo.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Nietzsche e Lou Andreas Salomé

 

O exemplo da grande paixão de Nietzsche serve para mostrar as limitações do seu pensamento.Retornei a este tema depois de muito tempo.Mas as minhas conclusões foram as seguintes,neste periodo inicial dos meus estudos:apesar das visões sobre o “ além do homem”,aquele que não se submete a este conceito abstrato de humanidade ,que padroniza os comportamentos,segundo um principio humanista geral,ele não pode construir esta figura dissociada de toda a experiência humana geral.

Por mais que se busque alguém que tenha uma singularidade absoluta isto não é possível,porque em Hitler tem algo de São Francisco e vice-versa.

Não se pode idealizar o ser humano.Por incrivel que pareça o “uber-mensch” não tem como passar por cima da experiência coletiva da espécie humana e é ele também uma forma de idealização abstrata.

Em termos racionais o humanismo indica um sentido ,uma certa tendência à unidade da espécie humana ou uma tendência para valores indicativos de sua prerservação e continuidade.

Concretamente esta abstração nada tem a ver com o ser humano real,que não necessariamente age e vive segundo estes critérios.É aqui que Nietzsche pretende uma ruptura com este modelo,sendo este indivíduo o modelo de si mesmo.

Contudo é ilusório que alguém se constitua como singularidade absoluta.Ninguém é tão original que não tenha nada em comum com qualquer outro.

A objeção seria dizer que Nietzsche queria apenas construir uma perspectiva a partir deste “individuo concreto vivo”,mas mesmo esta redução não elimina que na experiência humana o abstrato está presente como experiência também.O abstrato humano, o humano genérico não é vazio,tendo pontos de contato com a experiência humana cotidiana e temporal.

Há certas características da humanidade,inscritas na sua natureza,que o diferenciam de tudo o que existe.Neste aspecto,dizer que o homem tem asas não tem sentido,mas que ele possui razão tem e isto está na sua vivência real.

Quando Nietzsche encontrou um exemplar deste “ueber mensch” na figura de Lou Andreas Salomé,deveria ter aceitado a negativa de amor dela,respeitando a sua perspectiva,o seu sentido,mas a frustração que lhe sobreveio prova a contradição de sua visão com a realidade:por mais que a pessoa queira ir além dos padrões que a sociedade apresenta(e impõe, no entender dele),como os do romantismo,do sentimento amoroso(amplamente considerado),estes liames permanecem a exigir um desvio no sentido,um desvio em direção ao padrão e ao...rebanho.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Existe uma dialética em Platão?

 

Eu sou daqueles que entendem que não,que a intenção dele não era de fazer um discurso constituido de oposições,mas de um que fosse puramente racional.Platão é um dos filósofos realmente idealistas,porque repudia a sensibilidade.

Contudo a consideração desta sensibilidade como algo oposto à razão,no pensamento de Platão,não impediu a percepção cada vez maior de que ela existia de fato e estava de um certo modo na razão humana.

Este processo histórico de reconhecimento do sensível se dá progressivamente no mundo helenistico e se cristaliza no cristianismo.O cristianismo inverteu a ascese de Platão,mas porque reconheceu o sensível.O sensível através do sofrimento humano,o qual devia ser considerado pelo pensamento.

As relações entre os homens ,entre a razão e a sensibilidade passam a ser o terreno da filosofia e do pensamento.O homem como finalidade e a dialética como uma integração entre os homens e entre os conceitos e fundamentos de sua existência.

Não é que a dialética tenha se tornado o único método:visões racionalistas,idealistas,duais,materialistas prosseguem,mas a experiência humana sensível nunca mais deixa de fazer parte do caminho investigativo da filosofia.

Mesmo sob discussões consideradas bizantinas,como a da relação alma/corpo,subentende-se a tentativa do ser humano de dar um sentido à vida ,à sua experiência.

Muitas vezes é contra os filósofos que se produz novas ideias.Mostrando os seus limites outros conhecimentos são produzidos.

Não deixa de ser uma ironia da história que aquele filósofo preocupado em manter as barreiras de classe acabasse virando de cabeça para baixo por ação cultural,prática e filosófica dos escravos.Mas isto revela como os filósofos não são absolutos,aliás ninguém.

O processo pelo qual a barreira entre as classes vai sendo superada não é só puramente mental,mas também tem este lado.

O grego clássico,como o que vinha da época arcaica sempre, defendeu uma virtude aristocrática(arete),copiada da ação dos deuses heróicos,mas transplantada para as virtudes humanas da coragem e do esforço.

Em toda a História da Grécia estas barreiras proclamadas vão sendo progressivamente diluídas.No quarto século,o século de Aristóteles,a presença cada vez maior do deus do trabalho Hefaistos e de Dionisos marcava uma tendência que não se realizou por causa de Alexandre e a guerra com os persas.

Esta tendência indicava uma progressiva autonomização do homem frente aos deuses.

Mas com Alexandre e depois com a dominação romana tudo se estiolou ,mas se modificou num sentido que estava ab ovo no passado grego:o mundo do trabalho modificou o senso de honra aristocrático dos gregos e dos romanos,mostrando que para a sobrevivência dos impérios era preciso igualar todos num projeto politico que legitimasse a todos e expressasse a todos.Como não foi possível,o imperio romano caiu,mas um dos seus elementos constituivos permaneceu:o cristianismo.

É no âmbito do cristianismo que o principio de honra aristotélico é progressivamente modificado para significar um senso de grandeza mais afeito ao sacrificio,ao esforço,do que virtudes guerreiras,aristocráticas e heróicas.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Os quatro santos rússia O povo universal II

 

Para Dostoievski e Tolstoi o que unificava o povo universal e a humanidade era o compromisso cristão,os valores cristãos.Tal os motivava.A minha perspectiva ,como de todo laico e republicano,é diferente,porque inclui todas as pessoas,não por sua fé religiosa(mas não a excluindo),mas por sua natureza social e por seus valores positivos de bondade e solidariedade.

Mas evidentemente que esta postura ,aparentemente democrática, cria contradições entre aqueles que não estão na religião e os que estão.

Além do mais,pela força que a religião tem,fica mais fácil imaginar que reunir as religiões todas é a solução da utopia do que uma luta constante para republicanizar ou laicizar o mundo e a sociedade.

Contudo,por mais que a religião tenha uma amplitude que nenhum outro movimento alcança,ela é sim,parte da sociedade e não ela toda.

Entre a religião e as pessoas que não são religiosas reside o problema todo da humanidade ,mas não porque a minoria de descrentes (ateus e agnósticos)quer ter mais poder do que a maioria,mas porque o direito de ser ou não qualquer coisa na sociedade se sobrepõe às exigências de qualquer grupo ideológico,pregando nela.

O que define evidentemente a pessoa é a forma prática pela qual ela prova a sua bondade ,o seu desejo de ajudar,o seu esforço em melhorar a vida da humanidade.

Mas eu não contraponho a religião ao humanismo ou ao materialismo histórico que só vêm caracterizações gerais e materiais da humanidade.

Não é a questão de ser um homem,coisa dificil de se definir e nem só um trabalhador ou um produtor,ou como queria o iluminismo,um homem dotado de razão cientifica,isto é,capaz de identificar as causas de um fenômeno e modificá-lo.

O homem,no sentido próprio do termo é aquele que tem a possibilidade real,material,de fazer escolhas,como qualquer outro homem.

O marxismo tem a limitação de não levar em conta este direito.O iluminismo supõe erradamente que a pura mentalidade racional e investigativa é capaz de conduzir a humanidade;e o humanismo idealiza.

Assim sendo o termo cidadania é mais apto a definir o que deve ser o homem daqui por diante:alguém que represente a intersecção entre a vida social objetiva e a consciência humana,no seu sentido mais completo,mais bem formado,que pode haver,sem estabelecer quaisquer barreiras,como é próprio de uma concepção republicana de cidadania.