Continuando
a análise desta famosa entrevista de Coletti ,perdida nos anos 70
,mas premonitória.Nestes mesmos parágrafos que citamos no artigo
anterior outras observações são feitas por Coletti a respeito de
Kant,Hegel e Marx.Como consequencia destas observações.
A
primeira destas se refere ao problema do caráter cristão de
Kant,tanto quanto de Hegel.Na tradição marxista esta questão é
fundamental para definir-lhes o caráter de filósofos idealistas,mas
como Coletti(e eu)considera que Kant é mais materialista que muitos
materialistas e mais do que Hegel,o problema da concepção religiosa
de cada um assume importãncia capital.
Ao
que se saiba Hegel era luterano e Kant pietista,uma sub-seita
especificamente prussiana do luteranismo.
Era
mais fácil explicar tudo isto se Hegel fosse católico,mas ele está
inserido na reforma protestante.
Ocorre
que o protestantismo não é tão atinente aos principios
inicialmente propostos por Lutero e isto é mais do normal e
óbvio.Aos principios anti-idolátricos e anti-insitucionais da
reforma há seitas profundamente contrárias ao despojamento
protestante, intermediando entre a fé e Deus,a fé e os
homens,mediações tão complexas quanto às católicas,como o papel
da autoridade e do autoritarismo,o papel da idolatria e da
superstição.
Para
o que nos importa aqui é a relação de direta do homem com a
fé,pelo coração,que nos orienta a compreender estes
filósofos,mesmo os ateus,como Marx,os quais,no entanto,como
ele,reconhecem o valor histórico da religião.
Com
a reforma a questão da prova racional da existência de Deus perde
força e ganha a desnecessidade de considerar Deus como um ente
atuante no mundo.
Quisesse
isto ou não,o protestantismo facilitou as coisas para os
agnósticos,como Voltaire,que não atribuía importância nenhuma na
prescrutação dos designios insondáveis de Deus,frase bem a gosto
de Bossuet,que o francês sempre criticava.A figura providencial,a
providência divina não casava com as leis da natureza.
Para
Coletti,embora Hegel fosse um herdeiro desta tradição
crítica,buscou sempre uma adequação,um arranjo(absurdo) entre Deus
e a dialética.Mas como cinciliador em ente imóvel com o movimento
dialético?
Coletti
ressalta a insistência de Hegel no argumento ontológico de Santo
Anselmo(católico),mas por trás disto está novamente o problema
idealista(aí sim)da transcendentalidade.As ideias
transcendentais,religiosas,” criam o mundo”.O argumento
ontológico dá conta,segundo Santo Anselmo,que é impossível a uma
criatura imperfeita e pequena ter ideia de algo perfeito e maior,algo
capaz de criar o mundo.Em outro artigo analisarei esta questão.
Hegel
tentou de todos os modos manter este Deus criador e Kant certamente
acreditava nele,muito embora alguns autores o tenham como
Deísta,coisa de que tratarei também em outro texto.
O
fato é que Hegel pensava ainda num Deus e isto talvez tenha
confundido muita gente na análise do Espirito Absoluto,como o Deus
de Hegel,que se esquece do mundo,nas manifestações particulares do
Ser,para só depois, na aufhebung,apreender o real total,como um
todo.
Kant
não colocava Deus na natureza,no Ser e no mundo.Apesar de seu
propalado idealismo cristão,foi o primeiro a mostrar que não há
nestes topos,nestes locais, a presença de Deus,a exigir uma
adequação lógica entre o mundo objetivo e as inferências lógicas
da razão.O mundo não é feito para o homem pela primeira vez.Ele
podia ser colocado ao lado de Darwin,Freud e Copérnico,no inicio do
filme sobre Freud de John Huston...
Este
é o sentido da “ Ding-an-sich” incognoscível:não há esta
integração absoluta,sujeito/objeto.Kant foi o primeiro também a
mostrar que a filosofia,como a razão,não têm como provar que a
realidade existe(Carlos Nelson Coutinho gostava desta passagem),mas
que o sentimento do mundo(Carlos Drummond de Andrade) é que o traz
para a subjetividade,sendo esta descontinuidade o elemento decisivo
em Kant para entender a integração sujeito/objeto,que,nele,é muito
diferente da de Hegel.Aqui Kant vence Hegel e é por aqui que acho
que Hegel deve ser reavaliado.De novo assunto para um outro artigo...
Muita
gente não concorda comigo,mas eu faço um traço de união entre
estas posições kantianas e o Descartes de “As meditações
metafísicas”.
Em
certo momento Descartes,para mostrar permanência do cogito
como base fundamental da existência (cogito ergo sum),faz uma
pequena experimentação com uma vela acesa:ele diz que a vela é
tida como tal,ao ser observada no inicio.Com o tempo a chama
transforma o corpo da vela em algo indistinto e ela própria
desparece ,deixando de ser chama,para ser pavio morto.E assim ,por
ação humana, poderíamos transformar as coisas que sobraram em
outras coisas,indefinidamente.
O
Ser ,como a subjetividade,estão inseridos neste processo temporal de
transformação permanente,mas Kant incluiu a subjetividade,coisa não
feita por Descartes ,por Hegel e até,por Marx, a partir da
constatação de que a dicotomia cartesiana sujeito/objeto se
modifica pela relação a latere (derivativa ou
consitutiva?)entre a razão e a sensibilidade.Isto aí é meio
chavão,mas vale.Por isso ,embora Kant seja um racionalista ,ele não
é como Descartes ou os outros,pois é mais do que isto:ele é um
criteriológico,um criticista,unindo,inclusive a tradição racional
,explicativa,com a narrativa artística,juntando a razão com a ação
humana.
Neste
último caso é que fica claro que o problema da ação
humana,especialmente a ação revolucionária,proposta por Marx,não
pode ser reduzida às relações materiais de existência,às
condições materiais de existência,porque o homem não é resultado
destas condições,mas seu produtor também .Embora Marx reconheça o
papel da autoconsciência do problema social e se refira ao caráter
essencial da atividade humana(“ o homem é um ser que produz”),ele
só s e refere ao trabalho,sem considerar a expressão
cultural,artística,politica,partícipes do processo de libertação(e
da vida).Esta lacuna é a responsável pelo que o marxismo s e tornou
no século XX,com raras exceções.