quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Jacob Boehme e Platão

 

Dentro da minha formação e dos meus critérios a situação básica de Jacob Boehme é muito parecida com a de Platão e não era para menos em se tratando de um autor cristão.

O cristianismo ,todo mundo sabe,tem uma origem em Platão,que foi progressivamente invertido na sua ascese para exaltar não os aristocratas,mas os escravos,os servos,os pobres.

Mas tanto nele quanto no cristianismo ,quero dizer,nos fundamentos de ambos ,há um “estupro” conceitual,que lhes permite dar prosseguimento ao seu pensamento.

Platão chamou este estupro de “ parricidio” em relação ao filósofo que ele considerva o seu pai espiritual ,Parmênides,para quem a identidade do Ser era rígida e incontrastável.Ao elaborar a sua ascese a partir da oposição do Ser e o Nada,teria ele cometido este atentado contra seu mentor.

No cristianismo,a figura de Deus produz somente o bem.A crença no seu Deus é a crença no bem,na razão que está do lado de quem nele acredita,mas com Jacob Boehme algo parecido com Platão,ocorre com este filósofo e teólogo:na sua concepção de Deus o bem e o mal estão presentes e relacionados(antecipando Kant).

Para o cristianismo e qualquer concepção de Deus, admitir que dele provém também o mal é um “parricidio” semelhante àquele de Platão.

Evidente que Boehme despista muito esta verdade atribuindo a maldade à condição humana de Cristo,mas não tem como não separar estas duas coisas:Deus e sua criação.

Só assim,no entanto,é possível ao protestantismo fazer um discurso mais consentâneo com as suas concepções,isto é,entendendo ,entre outras coisas,que é preciso encarar o mundo real,o mundo do mal,de frente ,manipulando os seus elementos constitutivos(como o dinheiro)sem um sentimento de culpa tão avassalador como o dos católicos.

Por isto Boehme modifica um pouco a concepção da predestinação e articula um discurso menos fechado e impossibilitador do que o de Calvino.

Há muitos anos atrás fiz estudos sobre a queda no paraíso,de Adão e Eva,na interpretação católica e protestante e mostrei como no último caso a culpa e o anátema tinham sido mitigados:se Deus maculou o homem(e a mulher)pelo pecado original, a queda no mundo oferece grandes possibilidades de crescimento e... redenção(?)ao casal.

No fundo aqui começa uma diluição de certos dogmas do cristianismo,permitindo a ideia de que os homens ,transformando o mundo,transformam a si mesmos e podem se redimir,dialogando criadoramente com Deus.

Daqui,de Jacob Boehme nascem grandes discussões que desaguam no problema da alienação,do capitalismo,da verdadeira natureza de Deus e assim sucessivamente,que são os meus assuntos de sempre e os próximos.


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Mais um trecho de meu livro sobre Aristóteles

 

No século XIX Aristóteles foi considerado uma criança,por “acreditar” na sua ciência e fundar uma filosofia nesta ciência rudimentar,mas apesar do erros ,dos problemas ,subsiste o logos, a discussão sobre o logos,sobre o papel da filosofia de Aristóteles e da filosofia em geral.

É sob este signo que nós vamos ler,junto com os leitores,este extraordinário livro intitulado “ Metafísica”.O termo,dado por seu úlitmo discipulo,indicava apenas a posição deste livro no computo das obras do Mestre,que estavam sendo organizadas por ele.Ele a chamou de “o livro depois da fisica”,o livro que vinha ,na edição geral,depois dos textos sobre fenômenos físicos.É só uma questão formal aparentemente,mas num certo sentido cabe como fundamento,na medida em que o “ depois da física” se torna um discurso que se ergue sobre o mundo real revelado por ela.

É sob este paradigma que nós temos que entender Aristóteles e a metafísica,mas de fato a metafisica é a ontologia,o estudo do Ser enquanto Ser.O que fica profissionalmente é isto,constituindo-se na relação com aquela ciência primitiva(no sentido de inicial),mas dela se separando.


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O monismo e Aristóteles

 

O ponto nevrálgico de todo o monismo é a sua origem na filosofia grega.Lá mesmo nós podemos analisar as suas incongruências.Mas se estivéssemos lá,no tempo em que o pensamento grego se formava ,muito provavelmente não teríamos esta perpsectiva crítica que temos hoje.

Aristóteles,assim como os filósofos gregos(e todo o mundo), são datados,como eu,mas o tempo corre a meu favor e a favor dos leitores.Dos que vêm depois.

Os filósofos anteriores a Aristóteles eram monistas e ele é monista na medida em que junta a filosofia e a ciência numa mesma causa,numa única causa.

E supondo dentro das suas (dele)limitações,que o discurso explicativo se adequa perfeitamente à realidade das coisas,do Ser, o monismo,como a Metafísica,são verdadeiros.No entanto,Metafísica e Monismo são modos de ver a mesma coisa:a metafísica é o sistema geral,fechado,enquanto que o monismo é a causa,a causa única que explica e movimenta este sistema(fechado).

O que tem importância neste meu artigo sobre Aristóteles é mostrar como o monismo falseia a realidade e esconde o fato de que o Ser não é fechado e que encontra sempre equivalentes ou aberturas no mundo,nele mesmo.

É uma questão complexa saber porque os pré-socráticos e Aristóteles não puderam ver estas aberturas.Para mim é a questão da compreensão cientifica da realidade,mas eu não vou tratar disto aqui.

O próprio processo de desenvolvimento da filosofia demonstra que tudo pode ser contestado e novos discursos explicativos surgir.No entanto esta abertura se verifica em toda a filosofia,por causa disto e porque toda linguagem jamais tem condições de abarcar o ser e o mundo de uma forma completa e total.

Isto quer dizer que Aristóteles está superado,como os outros?Não.Quer dizer que fica claro que o pensamento está sempre se repropondo e sempre se adequando,ele também, diante do esforço histórico de compreensão da humanidade.E que por trás das afirmações peremptórias e dogmáticas há um propósito ideológico de poder,como ficou evidente desde as posturas de Pitágoras,que escondeu um conhecimento que contestava seu projeto politico.

Aristóteles,embora partisse do real ,totalmente diferente de seu mestre Platão,manteve uma separação entre o conhecimento racional e o prático,justificando afinal a escravidão.Se tivesse questionado este pressuposto teria certamente descoberto uma extraordinária abertura.

A filosofia,que recebe tantas críticas por sua inutilidade revela ilusões quando propõe explicações totais desmentidas depois.Sobrevive aos cacos,mas continua sofrendo estes ataques e aí entra um comentário importante dentro desta crítica,que no fundo é por causa do monismo,é por causa da crença de que tudo tende para a unidade ou é a unidade.

Já me referi que a ciência pensou em jogar estes cacos fora,mostrando a eficiência do saber científico,esse sim capaz de identificar a causa real das coisas.Tal não acontece.

Mas existe uma crítica que eu acho importante contestar agora:certa vez eu disse a um ortodoxo de esquerda,que tinha todos estes preconceitos com relação à filosofia,que sem Kant a liberdade de que nos desfrutamos hoje não seria possível,ao que ele contraditou que a luta dos povos o conseguiria para além dos filófosos,cujo papel,segundo ele não era sozinho e nem o maior.Quer dizer, a luta do homem para se libertar é suficiente e os filósofos são como um grão de areia.

Tal admoestação seria indicável para Aristóteles e os outros:mas mais cedo ou mais tarde a linguagem ,a organização da linguagem e do mundo seria feita por outras pessoas.

Estas assertivas são válidas para quaisquer épocas e pessoas:se Santos Dumont na época em que o 14 bis foi(seria)feito,outro o faria,sem dúvida.

Dependendo de cada contribuição,de cada época,de seus recursos, esta verdade é imediata ou demorada,mas inegável.Num outro sentido,não raro,a contribuição de um intelectual,como Kant ou outro criador ,adianta as coisas,cristaliza num discurso,que talvez fosse mais dificil e demorado de fazer,algo que a sociedade pede,mas coletivamente não consegue.

Duas coisas decorrem destas conclusões:que existe sempre um equivalente que denega o monismo e a metafísica e que o discurso racional,o logos,diferentemente do senso comum,guarda não a revelação absoluta da realidade mas a sua passagem,fixando um momento,que subsiste ou não conforme às circunstâncias.

Tais critérios são válidos para as figuras históricas e elucidam o que está sendo dito:os movimentos de massa necessitam de um intérprete que cristaliza as reinvindicações e apura a responsabilidade geral deste movimento ,dando-lhe sentido e adiantando a sua direção para os fins desejados.É o caso de Lutero,de Lênin.E de outros.

Mas em um caso extraordinário tudo se mostra mais claro:Cristo representa o sofrimento da humanidade,mas não há de se dizer que só o cristianismo conhece o sofrimento,sendo este sentimento comum à humanidade.O papel de Cristo, e por isso ele tem relação com a filosofia ocidental racional,é cristalizar como um simbolo e uma lembrança esta verdade comum da humanidade,não só como fato imediato ,mas como mediação de aberturas e possibilidades de interpretação.

O discurso racional não é sozinho nem apartado do senso comum ,mas ele cumpre papéis temporais,na voragem do tempo,que nem as massas conseguem.