terça-feira, 28 de setembro de 2021

A leitura da metafísica de Aristóteles

 

intróito

Ler conscienciosamente a “ Metafísica” de Aristóteles é como ler Shakespeare:acessar um pouquinho a divindade.Mas por um pormenor Aristóteles causa uma sensação ainda mais mitica e mistica do que o inglês.É como acessar tudo o que existe.Todos os ciclos,todas as realidades.Isto o aproxima de Michelângelo,mas este é mais “limitado” na sua arte.

Assim como apreciar o florentino é apreciar o mármore ,em Shakepeare e Aristóteles é como colocar na boca este mesmo mármore,este mesmo monumento.

Certas obras deviam ser colocadas num monumento,num local comum a toda a humanidade para serem admirados.Admirados mas não idolatrados.

Até mesmo a crítica necessária à limitações eventuais e humanas destes “ pais da humanidade”,contribui para o mito que os cerca e os fundamenta.

Lógico que nenhum deles ,e entre eles Aristóteles,que é meu tema aqui,está livre de limitações,mas o que sobejamente os mantém nesta condição mitológica é que mesmo estas “ lacunas” propiciam continuidades,múltiplas interpretações .

É próprio dos deuses,de Deus,permitir aos homens muitos caminhos para se chegar a ele.Porque não há prova de que as palavras conhecidas de Deus não são uma atribuição humana.Nesta intersecção entre a dúvida e a palavra a leitura de homens como Aristóteles assume um caráter de libação,de busca do pensamento de Deus.De Deus ou de Aristóteles?

O que é a metafísica?

Aristóteles nunca usou o termo metafísica nesta sua obra capital.Este termo foi lhe atribuido na idade média pelo cristianismo e significa,para lembrar “ além da phisica”,um discurso que explica o mundo real,principalmente a natureza ou tudo o que existe,o ser,que será,em seu livro, sistematizado e compreendido(compreendido?).

Aristóteles chamou o seu livro de “ livro da ciência primeira” e hoje há uma discussão imensa sobre o termo que o designa,sendo o mais pertinente “ ontologia”,porque o é realmente.

Ao longo da leitura tratarei mais detlhadamente destes problemas já aventados aqui.Eu fiz há muitos anos uma leitura entrecortada pelas necessidades da vida deste livro,mas agora ,maduro ,eu posso e devo fazê-la ,por obrigação profissional e divido esta leitura com todos.

Uma outra coisa:pretendo fazer nestas leituras uma conexão essencial pouco estudada no Brasil pelo menos:a intersecção entre Aristóteles e seus intépretes árabes,Averrós e Ibn Sina(Avicena).

sábado, 25 de setembro de 2021

Os começos da dialética

 

Platão

Continuando as reflexões começadas no artigo sobre Hegel,há que se dizer que aquilo que se considera como dialética começou nos antigos gregos e entre eles Platão.

Certa feita quando eu estudava filosofia na uerj perguntei a um professor se as oposições construidas no seu esquema ascético eram uma dialética e ele demonstrou uma certa irritação para me dizer que não.
Mas no meu entender ele só entendia como dialética(hoje eu sei que era assim)o que Hegel e Marx diziam ser.

Com os artigos que tenho posto à disposição de todos fica claro que sempre houve uma discussão em torno desta concepção hegeliano/marxista da dialética.

Remontando a Proudhon,a Kant ,nós vemos que a dialética pode ser vista por uma relação entre termos opostos e que ela é produzida pela subjetividade humana.Não é que uma coisa é outra.Não é que ela seja ela e a outra.dois termos diferentes se opõem.A integração entre estes dois termos se dá pela experiência,pela prática,pela linguagem e muitas outras formas(sensibilidade),mas não por esta suposta “ mistura”.

Platão fez uma afirmação famosa depois que concebeu o seu esquema ascético:segundo ele ,teve que cometer um “ parricidio” em relação à Parmênides,o pai da identidade,para colocar dois termos opostos assim.

Mas nós diriamos:uma oposição no discurso,confirmando avant la lettre as assertivas acima sobre a dialética como é modernamente considerada.

O que sobrevive da identidade parmenidica em Platão é a barreira entre o pensamento racional e a sensibilidade.Platão rejeita o conhecimento sensível como falso e adota o racional como único verdadeiro,capaz de descobrir a harmonia real do universo.

O cristianismo é que rompeu com esta barreira ,tornando o conhecimento sensível como parte do conhecimento e isto confirma aquilo que eu disse no artigo sobre Hegel:quanto mais se retroage no pensamento cristão mais e mais se percebe que muitas noções e muitos conceitos estavam nele, ab ovo. Este é um deles e antecipa ,in limine, o pensamento de Kant.

Então em termos potenciais esta oposição no discurso ,não propriamente reconhecida por Platão e contra ele ,é o inicio da dialética como nós entendemos hoje.


quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Profissionalização da Filosofia e Hegel como plagiário

 

Tenho falado muito sobre a profissionalização da filosofia e hoje eu vou tratar de um assunto que acrescenta mais bases ao que tenho dito.

O estudo da filosofia,como de qualquer matéria,exige permanência,continuidade e isto vale para mim também.Ao longo da vida sempre separei a filosofia da teologia.

A partir da ciência moderna a filosofia tomou um rumo muito diferente,deixando de lado a base teológica imposta pela religião.Isto é parcialmente verdade,mas nos meus estudos continuados,cada vez mais percebo que a filosofia,digamos,laica,que vem deste periodo até hoje,é uma reinterpretação de alguns postulados da filosofia cristã.

Mesmo os filósofos que não tratam diretamente da teologia,influenciados pela ciência moderna,repercutem os seus efeitos sobre a crença.

Fica claro que no jusnaturalismo laico existem ainda ecos da religião,do jusnaturalismo religioso,porque no lugar de Deus está um principio que ocupa um lugar simile a ele:natureza.

As leis da natureza,propaladas desde os antigos,nada mais são do que uma crença fundada nas limitações da ciência do passado de que existe uma lógica no mundo,uma “inteligência” dada desde sempre.

Diante dos avanços da ciência,tanto os filósofos como os cientistas tiveram que reinterpretar a figura de Deus e no final tratar da natureza de per si,por ela própria,muitas vezes,a contragosto.

Contudo , e é por isto que importa estudar sempre a filosofia ou qualquer saber ,como um todo,permanentemente,este ruido entre cabeças pensantes,a natureza e Deus é ,em grande parte “ solucionado” por figuras mais ligadas à teologia que acabam por contornar este problema e oferecer uma lógica mais coerente,ainda que se lhe possa questionar ,naturalmente.

Um destes,ou melhor,o principal e quase único exemplo disto é Jacob Boehme,um filósofo e teólogo luterano alemão dos séculos XVI e XVII que aprofundou algumas consequencias das teses da Reforma.

Se para a Igreja Católica ela própria é a intercessora do homem,decaido pelo pecado original,perante Deus,no interesse de recuperar a graça perdida no paraíso,para os protestantes a relação entre os homens e Deus é direta,localizada no coração do homem que toca no sangue derramado de Cristo na cruz.

Para Boehme,seguindo o credo reformado,o sacrificio de Cristo não é para perdoar os pecados humanos,mas uma oferta de generosidade(abnegação significativa),para revelar a vontade de Deus,segundo a qual o sofrimento é parte da criação e elemento necessário para se recuperar a graça,isto é ,o seu reconhecimento é condição para que os homens voltem ao regaço divino.

Ver no sofrimento do outro o de Cristo é o meio de construir uma comunidade humana.Privilegia-se o 11 º mandamento:” Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” como o meio de obtenção da Graça,da comunhão com Deus.

Deus se enraivece com a humanidade por não seguir estes passos e a única forma de aplacar a sua ira é construir uma humanidade que se reconstitua reconhecendo no sofrimento da cruz o dos homens.

O 11 º mandamento é a primeira proposta de comunidade universal e o ruido entre os homens,por não interagirem com esta comunidade ,tem que ser superado por um discurso que una os homens.

Nestas conceituações está o principio do direito natural e ,antecipadamente,o “ estado de natureza”,por exemplo,de Rousseau.

A comunidade universal seria um estado perfeito,se respeitando os preceitos divinos.Aqui está o contrato social,sem mais nem menos.

Mas está antecipado aqui também o pensamento de Hegel.Os homens,confrontados uns com os outros(dir-se-ia dialéticamente,entendida esta como pelo menos termos opostos[reconhecendo-se]{no sofrimento,no sofrimento de Cristo})encontram uma forma de integração.

Só assim faz sentido aquilo a que me tenho referido ,citando Colleti ou Garaudy.

O Espirito Absoluto ou a Idéia Absoluta são a visão de Deus do mundo,a criação de Deus,segundo os seus critérios.Hegel sofria para colocar este Deus aí no processo de explicação dialética do mundo,mas entrevia que o movimento valia por si mesmo,sem estar pré-dado por uma vontade diferente dele.

O modo como Deus se diferencia de sua criação dialética,na oposição e integração de Deus com o mundo,é um dos maiores problemas deste contexo filosófico.

Deus se aliena do mundo e se integra segundo leis(dialéticas)criadas por ele(aqui é que parece haver um liame entre Hegel e Spinoza)como causa de si mesmo.

O conceito de alienação ,tão caro ao marxismo,ao materialismo dialético,origina-se no cristianismo,na doutrina da (re-)obtenção da graça.

Mas se no cristianismo o reconhecimento se dá por Cristo,no seu sofrimento,em Hegel se dá pela subjetividade que reconhece o outro no movimento,despojado de outra realidade que não seja a do Ser.

O sofrimento é um dos elementos constitutivos desta consciência que compreende progressivamente o mundo em seu movimento.Em termos morais ocupa um lugar decisivo,mas ainda assim é mediatizado pelo movimento(dialético).

A diferença essencial da dialética hegeliana para as outras é que a oposição entre os dois termos não estaca na sua pura confrontação,mas os termos se interligam:Deus se define pelo movimento,criado por ele ,como algo contrário a ele,mas essencial para a sua constituição(como Ser).

O sujeito só se define por um objeto e assim sucessivamente.Quer dizer ,num termo está contido o outro e vice-versa.

Embora seja exagero considerar Hegel plagiário de Boehme,não há como negar que a estrutura de seu pensamento nasce no teólogo.

E mais do que isto: fica claro que na pretendida ciência da lógica hegeliana está contido um germe de Deus,que se reflete no monismo dialético de Marx.

E relembrando obsessivamente,o que Marx faz não é uma inversão da dialética,mas um despojamento só,ele também muito discutivel,porque como já disse à farta,Hegel aplica a sua dialética ao Ser em geral,incluindo a natureza.

Marx entende(como Engels e Lênin)que Hegel está criando o mundo,como o Deus biblico alegara que fizera,mas não é isto.

Este Deus não é igual ao de Spinoza,porque não está em todos os lugares,mas está postado no mundo,criando movimento e se movimentando também,do modo que falamos mais acima.Hegel entende ter solucionado esta discrepância entre um Deus perfeito,tido como imóvel,através do movimento,como algo inarredável e... perfeito.

Sacrificou a imobilidade,constante na doutrina da predestinação de Calvino ou no Deus medieval,para defender uma mediação conciliatória e definitivamente explicativa.

Mas o que Marx faz não é a inversão,é o despojamento da figura de Deus e do espirito absoluto,a ideia absoluta,colocando no sujeito cognoscente e no objeto cognoscivel os termos de transformação da realidade.


domingo, 12 de setembro de 2021

Marxismo, “Filosofia” de nosso tempo

 

Marx e Sartre

Foi Sartre que apontou o marxismo como a “ filosofia” do nosso tempo,mas se ele observasse com cuidado veria que Marx não é propriamente um filósofo.Eu já provei isto aí.Ele é um pensador que trata de muitas coisas inter-relacionadas pela dialética.Tirando a dialética não tem nada ou antes disciplinas mais ou menos conectadas.

Contudo pela preocupação com a transformação,com a mudança,inerentes à admissão do movimento,como parte do saber, a questão da superação de determinados fundamentos do tempo ,conforme Hegel tinha proposto sobre nossa época,passou a ser essencial.A essência se movimenta ,quer dizer, se recoloca permanentemente e aquilo que era, já não é mais.Todo o tempo,toda a época tem os seus fundamentos ,as suas carcaterísticas,que se modificam e formam outro tempo.

Sartre ao afirmar que o marxismo era a filosofia do nosso tempo o condicionava às questões de nosso tempo.Superando este tempo,as questões e problemas do tempo são superadas.

E aí há ou não necessidade do marxismo?O marxismo se vai se os problemas denunciados por ele se vão também?

Esta afirmação sartreana é parcialmente verdade,porque os impasses de nossa época foram abordados por Marx e o marxismo,mas não só por ele.

Ao falar deste modo Sartre aceita a auto-arrogada proposição(pretensão)de Marx e do marxismo de ser o pensamento capaz de abordar o tempo in totum .

Para Marx a sua abordagem era a única científica e por isso única capaz de superar conscientemente aquilo que estava destinado a desaparecer.

O marxismo explicou porque ele tinha esta condição.Se esta premissa proposta está certa,então superado o tempo velho Marx e o marxismo vão com ele.Não porque ele fizesse parte do passado,mas porque o compreendeu bem,acertadamente.Mas analisando aquilo que ele considera passado é passado também ,porque está nele.

De qualquer forma,como fautor do futuro,ele é parte dele,por ter notado no passado e no presente o passo seguinte.Ainda assim,todo o arcabouço explicativo do marxismo desaparece,ficando ele como parte real e prática do futuro,que já não o é somente ,mas presente.

Trotsky,que compreendeu bem o marxismo ,embora não tivesse lido os escritos de juventude o analisara deste jeito num outro aspecto:o sistema socialista criado por Stalin(e por ele Trotsky)não era legitimo porque baseado na hegemonia da classe operária,quando o objetivo era a supressão da sociedade de classes.A vanguarda do operariado,superando a sociedade de classes acaba com a classe operária também e...consigo própria(a vanguarda),num movimento essencial e necessário.

Feito isto o que sobra do marxismo?Há algo que fica do marxismo,que transcenda esta passagem?O que fica do passado e do marxismo?

Proudhon afirmava que ,dentro da concepção da aufhebung,toda a época,todo passado,deixava alguma coisa de positiva no futuro.De certa forma,como explicamos antes,Marx pensava o mesmo,mas vendo no passado o germe do futuro,que o renega totalmente.Proudhon entende que no passado permanecem valores,idéias e tudo o mais,por sua qualidade,por sua legitimidade.

A sociedade escravocrata do passado criou obras de arquitetura,conhecimentos cientificos,que permanecem,apesar do sacrificio de pessoas inocentes.Tenho a impressão de que Marx concordaria aqui com Proudhon e muitos de seus seguidores deveriam saber disto aí...espirito de partido em história é bobagem,é infantilidade.É uma compreensão errada,proveniente da dialética simplificada dos tempos de Stalin,mas que estava ab ovo em Hegel(passando por Engels).

Mas o marxismo só permanece se entender ,se tiver efetivamente algo a ver com o que é transcendente na vida,mas ele é um materialismo,imanente,como todo materialismo. E aí as coisas complicam.