Tenho
falado muito sobre a profissionalização da filosofia e hoje eu vou
tratar de um assunto que acrescenta mais bases ao que tenho dito.
O
estudo da filosofia,como de qualquer matéria,exige
permanência,continuidade e isto vale para mim também.Ao longo da
vida sempre separei a filosofia da teologia.
A
partir da ciência moderna a filosofia tomou um rumo muito
diferente,deixando de lado a base teológica imposta pela
religião.Isto é parcialmente verdade,mas nos meus estudos
continuados,cada vez mais percebo que a filosofia,digamos,laica,que
vem deste periodo até hoje,é uma reinterpretação de alguns
postulados da filosofia cristã.
Mesmo
os filósofos que não tratam diretamente da teologia,influenciados
pela ciência moderna,repercutem os seus efeitos sobre a crença.
Fica
claro que no jusnaturalismo laico existem ainda ecos da religião,do
jusnaturalismo religioso,porque no lugar de Deus está um principio
que ocupa um lugar simile a ele:natureza.
As
leis da natureza,propaladas desde os antigos,nada mais são do que
uma crença fundada nas limitações da ciência do passado de que
existe uma lógica no mundo,uma “inteligência” dada desde
sempre.
Diante
dos avanços da ciência,tanto os filósofos como os cientistas
tiveram que reinterpretar a figura de Deus e no final tratar da
natureza de per si,por ela própria,muitas vezes,a contragosto.
Contudo
, e é por isto que importa estudar sempre a filosofia ou qualquer
saber ,como um todo,permanentemente,este ruido entre cabeças
pensantes,a natureza e Deus é ,em grande parte “ solucionado”
por figuras mais ligadas à teologia que acabam por contornar este
problema e oferecer uma lógica mais coerente,ainda que se lhe possa
questionar ,naturalmente.
Um
destes,ou melhor,o principal e quase único exemplo disto é Jacob
Boehme,um filósofo e teólogo luterano alemão dos séculos XVI e
XVII que aprofundou algumas consequencias das teses da Reforma.
Se
para a Igreja Católica ela própria é a intercessora do
homem,decaido pelo pecado original,perante Deus,no interesse de
recuperar a graça perdida no paraíso,para os protestantes a relação
entre os homens e Deus é direta,localizada no coração do homem que
toca no sangue derramado de Cristo na cruz.
Para
Boehme,seguindo o credo reformado,o sacrificio de Cristo não é para
perdoar os pecados humanos,mas uma oferta de generosidade(abnegação
significativa),para revelar a vontade de Deus,segundo a qual o
sofrimento é parte da criação e elemento necessário para se
recuperar a graça,isto é ,o seu reconhecimento é condição para
que os homens voltem ao regaço divino.
Ver
no sofrimento do outro o de Cristo é o meio de construir uma
comunidade humana.Privilegia-se o 11 º mandamento:” Amai-vos uns
aos outros como eu vos amei” como o meio de obtenção da Graça,da
comunhão com Deus.
Deus
se enraivece com a humanidade por não seguir estes passos e a única
forma de aplacar a sua ira é construir uma humanidade que se
reconstitua reconhecendo no sofrimento da cruz o dos homens.
O
11 º mandamento é a primeira proposta de comunidade universal e o
ruido entre os homens,por não interagirem com esta comunidade ,tem
que ser superado por um discurso que una os homens.
Nestas
conceituações está o principio do direito natural e
,antecipadamente,o “ estado de natureza”,por exemplo,de Rousseau.
A
comunidade universal seria um estado perfeito,se respeitando os
preceitos divinos.Aqui está o contrato social,sem mais nem menos.
Mas
está antecipado aqui também o pensamento de Hegel.Os
homens,confrontados uns com os outros(dir-se-ia
dialéticamente,entendida esta como pelo menos termos
opostos[reconhecendo-se]{no sofrimento,no sofrimento de
Cristo})encontram uma forma de integração.
Só
assim faz sentido aquilo a que me tenho referido ,citando Colleti ou
Garaudy.
O
Espirito Absoluto ou a Idéia Absoluta são a visão de Deus do
mundo,a criação de Deus,segundo os seus critérios.Hegel sofria
para colocar este Deus aí no processo de explicação dialética do
mundo,mas entrevia que o movimento valia por si mesmo,sem estar
pré-dado por uma vontade diferente dele.
O
modo como Deus se diferencia de sua criação dialética,na oposição
e integração de Deus com o mundo,é um dos maiores problemas deste
contexo filosófico.
Deus
se aliena do mundo e se integra segundo leis(dialéticas)criadas por
ele(aqui é que parece haver um liame entre Hegel e Spinoza)como
causa de si mesmo.
O
conceito de alienação ,tão caro ao marxismo,ao materialismo
dialético,origina-se no cristianismo,na doutrina da (re-)obtenção
da graça.
Mas
se no cristianismo o reconhecimento se dá por Cristo,no seu
sofrimento,em Hegel se dá pela subjetividade que reconhece o outro
no movimento,despojado de outra realidade que não seja a do Ser.
O
sofrimento é um dos elementos constitutivos desta consciência que
compreende progressivamente o mundo em seu movimento.Em termos morais
ocupa um lugar decisivo,mas ainda assim é mediatizado pelo
movimento(dialético).
A
diferença essencial da dialética hegeliana para as outras é que a
oposição entre os dois termos não estaca na sua pura
confrontação,mas os termos se interligam:Deus se define pelo
movimento,criado por ele ,como algo contrário a ele,mas essencial
para a sua constituição(como Ser).
O
sujeito só se define por um objeto e assim sucessivamente.Quer dizer
,num termo está contido o outro e vice-versa.
Embora
seja exagero considerar Hegel plagiário de Boehme,não há como
negar que a estrutura de seu pensamento nasce no teólogo.
E
mais do que isto: fica claro que na pretendida ciência da lógica
hegeliana está contido um germe de Deus,que se reflete no monismo
dialético de Marx.
E
relembrando obsessivamente,o que Marx faz não é uma inversão da
dialética,mas um despojamento só,ele também muito
discutivel,porque como já disse à farta,Hegel aplica a sua
dialética ao Ser em geral,incluindo a natureza.
Marx
entende(como Engels e Lênin)que Hegel está criando o mundo,como o
Deus biblico alegara que fizera,mas não é isto.
Este
Deus não é igual ao de Spinoza,porque não está em todos os
lugares,mas está postado no mundo,criando movimento e se
movimentando também,do modo que falamos mais acima.Hegel entende ter
solucionado esta discrepância entre um Deus perfeito,tido como
imóvel,através do movimento,como algo inarredável e... perfeito.
Sacrificou
a imobilidade,constante na doutrina da predestinação de Calvino ou
no Deus medieval,para defender uma mediação conciliatória e
definitivamente explicativa.
Mas
o que Marx faz não é a inversão,é o despojamento da figura de
Deus e do espirito absoluto,a ideia absoluta,colocando no sujeito
cognoscente e no objeto cognoscivel os termos de transformação da
realidade.