Há muitos anos atrás havia este debate nas faculdades de direito
entre as concepções de Kant e Kelsen a respeito da norma
jurídica.Ainda mais porque é claro que não se pode falar em Kelsen
sem falar antes em Kant.
Kant ,como tenho explicado aqui,afirmou que a filosofia integra a
experiência dos povos,sendo um de seus elementos,não o elemento.
Com isso os modelos metafísicos
se esboroam definitivamente levando consigo esquemas tradicionais de
poder.A filosofia e o saber em geral podem ou não constituir um
modelo ou não constituir nenhum.
Ao dizer isto Kant abre o caminho
para a “teoria pura do direito” de Kelsen,na medida em que o
direito também se liberta dos arquétipos metafísicos e se explica
por si mesmo(daí o “ pura”),na relação inelutável com a
referida “ experiência dos povos”.
Mas,sem o dizer,Kant abre espaço
para uma dialética entre a filosofia e o direito,entre os valores e
a experiência dos povos.
A palavra direito ,bem como a
norma ,têm uma
polissemia,uma amplitude de significados,mas nasce necessariamente na
axiologia,na teoria dos valores,que ,na vida,antecede ao direito e ao
estado.
Muita gente,principalmente no lado
do marxismo, não entendeu ,ainda, que a norma,o senso de limite
,inere à existência humana,sendo mesmo uma medida e condição da
humanidade,como espécie que conhece.Mas do
limite(conhecimento,costumes,prática)se vai para uma avaliação e
estimação do mundo(e vice-versa[dialeticamente falando]) e destas
para a construção de sentido e significado.
O caminho é este:uma coisa é
perceber o mundo,dizer o que é uma coisa é,outra é atribuir-lhe
valor e ser tocado por ele,pelo seu significado.
Sei o que é uma parede,mas
atribuo-lhe significados quando dependuro um retrato de meus pais,os
quais me servem de inspiração na vida,no que é uma relação
dialética,como produto da consciência.
Assim é,também ,com o
direito,(produto da consciência),que funciona como um limite,uma
regra,cheia de significados possíveis e que depende deles.Afirmar
pura e simplesmente o direito,qualquer um pode.Stalin,Churchill e
Hitler usaram o direito ,como noção geral de limite,para impor os
seus modelos intocáveis.Mas o direito sem o fundamento do
valor(Kant[filosofia{axiologia}]),sem a eventual dialética do
retorno em bem-estar não tem sentido,ou tem um
não-sentido(destruição)anti-humano.
Embora a metafísica tenha
acabado,um seu elemento,o valor,como experiência humana
cotidiana,constante,permanece parte dos limites e regras essenciais
do sentido construtivo que a espécie humana precisa ter(deve ter[se
quiser se afirmar{existir}]).
É aqui que a crítica a Kelsen se
faz presente por sua ligação,quer dizer, da sua toria pura,com o
estado forte,na Áustria,tão útil ao nazismo ,quando invadiu o seu
país.
Para Kelsen o valor fundamental do
direito é a segurança.Na verdade é um
anti-valor(anti-humano),porque transfere para algo fora do valor,ou
distinto de sua natureza própria(estimação),a segurança,como
condição única(objetiva[heterônoma])da existência humana,que
deriva(concepção do estado forte e dos totalitarismos) só da
vontade,que se pretende abstrata,mas que é condicionada.
O ser humano é condenado a
estimar.Ainda que negue o seu caráter axiológico,inconscientemente
avalia,sendo a negação disto a mediação pervertida e distorcida
dos “ismos” destrutivos do século XX,o fascismo,o stalinismo e
os imperialismos(com suas diversas justificativas),que embasam os
seus crimes e garantem a sua reprodução,o seu caminho de impostura.
Não é só a vontade que fundamenta
a existência do homem,mas sua capacidade de escolha(como diante de
uma parede e de um quadro.Por isso Kant diz na “ Metafísica dos
Costumes”,que a vontade que vale é a incondicionada,porque assim
ela se conecta imediatamente com o valor,com a capacidade
estimativa,perfazendo a ligação entre o elemento filosófico com os
costumes(experiência),que dilui a metafísica,mas não descarta o
papel social e cotidiano(mais adequado,mais democrático,mais
situado)da filosofia,através da axiologia.
A vontade condicionada se submete às
conveniências do tempo,” objetivas”,como se fosse possível
medir o homem por algo fora dele,fora-de-si.
Desta forma é que a idéia de
segurança(tão em voga no Brasil hoje)falseia,com uma abstração
vazia(porque não consulta as subjetividades)o desejo humano de
liberdade.Basta excluir o criminoso que eu posso deixar minha porta
aberta...Como se este silogimo fosse suficiente para abarcar e
solucionar o problema humano complexo do direito e da liberdade.Para
Kant não existe liberdade sem direito,direito no seu sentido
polissemico,de norma,valor(certo e errado),limite.Para Kelsen,basta o
Estado garantir a coesão social,de cima para baixo...
Mas eu escrevi este artigo para
demonstrar também como as discussões filosóficas mais complexas
passam de forma errada para o senso-comum e sofrem distorções
perigosas(que levam aos nazismos...);como esta mínima ligação
entre filosofia e costumes é necessário de se conhecer pelo
senso-comum(simples razão).
Acaso o nazismo não fez o que fez
em nome do direito da Alemanha?Se houvesse esta compreensão do povo
alemão,de que antes do direito existe o valor,a alegação do
direito não seria feita,porque sem fundamento.
Há pessoas em rádios do rio de
janeiro que reproduzem este erro(esta besteira) e aí cometem aquele
ato condenado pelo direito positivo,de “summum ius,summum
injuria”,” excesso de direito,excesso de injustiça(abuso do
direito)”.O direito também deve se limitar.