domingo, 14 de fevereiro de 2016

O Ego e o Eu



Série de Filosofia



O trans-valorador dos valores é alguém que tem  um ego e um eu.A transvaloração está no plano das escolhas,no plano do Eu,mas ninguém chega ao Eu ou subsiste sem um Ego.O ego é a substância psíquica formadora daquele Eu que vai se colocar diante dos outros,na sua perspectiva.O Ego é(o) tempo,é a constatação de que o Homem é um ser-no-tempo,mas Nietzsche  trata do além-do-homem(uber-mensch{que nada tem a ver com o super-homem}).O além- do- homem,o uber-mensch,o trans-valorador (n{o} Eu)é aquele que não tem consciência de rebanho,que não sucumbe a toda abstração(metafísica)falsa.
Nietzsche não é contra a unidade da experiência,não deixa de  reconhecer este momento de união com o rebanho,mas preconiza  a sua superação.Algo no Ego e no Eu destaca-se e torna o Homem n(o) além-do –homem.
Este momento é o da vontade de potência.Não a  vontade de poder,como erradamente dirá a sua sobrinha Elizabeth Forster Nietzsche(amiga e beneficiária política de Hitler).A vontade de potência é desejo de unidade para além do homem.Unidade entre Ego e Eu.
No texto  “ O eterno retorno”,Nietzsche aponta para os termos desta transvaloração: o tempo,no Ego,é constituído de instantes,que sempre retornam ao mesmo lugar;o primeiro instante é sempre  o mesmo,porque ele se referencia a esta experiência comum,que conduz de diversas maneiras para formas e mais formas do mesmo.O enfado,o tédio,o desinteresse,tudo isto é mesmo,mesmidade,mesmice,diríamos hoje.
A força (que impulsiona  a potência) tem uma medida determinada,mas não é infinita,diz o pensador.O tempo é que é.Mas o tempo não se diferencia dele mesmo.Um instante não é não-tempo,porque seria absurdo,do não-tempo nascer o tempo.Mas se um instante nasce no tempo,ele não é diferente dele,então um instante não é absolutamente novo,mas algo que já estava aí,no tempo,em suas possibilidades.Não adianta,pois,exercer esta força no tempo,no ego.O ego pode  ser infinito,mas o Eu,não.Se buscar o tempo,vai se repetir.
No mundo animal uma formiga não é ,nunca igual a outra.O seu desenvolvimento não se dá da mesma forma e na vida processos ocorrem ,sem serem conhecidos pelo animal,de modo diferenciado entre eles.O Homem não tem também como conhecer(o todo{nem tem porquê}),mas a questão lhe é posta,inclusive para si mesmo,pela consciência,junção Ego/Eu.
O ego é também o orgânico.Se a consciência do  todo,do Ego e do Eu relacionados quisesse se tornar o orgânico,já o teria(porque está no tempo),mas,a unidade entre estes dois termos,não é tempo.Por isso o Eu não tem que se referenciar ao Ego(ao orgânico),que não é nada para ele,só condição de existência,mas não de  sentido.Não tem importância para o Eu a reação química que nos faz pensar.
O que une o Eu ao Ego é a relação com o devir do todo.Não o tempo,mas a eternidade do devir,que está em nós,no ego e passa para o Eu.O ego e o Eu estão no devir.
O nascimento e a morte são partes do tempo,mas aquilo que vai além do nascimento e  da morte,o eterno nascer e morrer é que é a eternidade.A força não reside no tempo(no ego),mas nesta eternidade,que o eu deve  aceitar.
Nietzsche usa no aforismo 27 de “ O eterno Retorno”,o socialismo para representar o erro dos indivíduos em buscar a felicidade,na  associação,no outro(anti-transcedentalismo de Nietzsche{anti-kant}).Poder-se-ia dizer que esta crítica vale para toda a política e para toda a religião,toda forma de associação,que encontra um motivo e uma finalidade para existir:o bem-estar geral em qualquer uma delas tem um motivo,o mal,que se expressa de diversas formas,a culpa na religião,a exploração(a culpa está aqui sub-repticiamente{porque o socialismo tem muito de cristianismo}) a finalidade ,encontrar a felicidade,não está em si mesmo,no Eu,mas no ego ,que é comum a todos.Só se chega ao Eu,depois de passar pelo Ego,obrigatoriamente,como fez Cristo.Cristo ,desde o Sinédrio até ao momento final da morte na cruz,é ego,preparação(sofrimento)e quando “ entrega o espírito”,é Eu.dizem os exegetas que  a tradução corrente das últimas palavras de Cristo antes de morrer,está errada,porque ele teria dito “ senhor porque estás tão diferente”,já que ele se tornou de novo Deus,ou igual a  alguém que não sofre mais,que está no devir,na eternidade .
Em seu famoso livro “ A destruição da Razão”,que popularizou a suposta contribuição de Nietzsche à barbárie nazista,Luckács faz naturalmente uma interpretação tendenciosa e não minuciosa do pensamento de Nietzsche.Este último tem razão em colocar o problema do individuo diante do mundo.A obrigatoriedade da mundanização  é uma invenção metafísica de poder,que a ciência acaba por ajudar,no seu caracter ideológico(consciência falsa).O Eu se condiciona o tempo todo pelo ego,buscando modelos fora-de-si(loucura?).
A alternativa de mundanização acima citada de Cristo,está numa contradição terrível com ele(Cristo)que Nietzsche notou:a religião cristã é anti-mundana,mas cria critérios de organização do mundo  e os exige dos fiéis,que crêem que a salvação é num outro mundo,sempiterno,e o existente se toma ,se mede,pelo inexistente.Não há nada mais mundano que o cristianismo e toda a crença,mas num sentido de poder manipulatório geral,de controle  e paralisia às vezes do devir(se é que isso é admissível{nem a religião toca a verdadeira eternidade}).
A alternativa marxista de Lukcács é pior ainda neste sentido,porque se não existe a culpa cristã,existe a consciência de classe,objetiva,que define o status de  procura da felicidade,num outro fora de  si(loucura?).E o pior:não são todos os beneficiários.A classe operária já padece desta objetividade,mas pode  se redimir pelo trabalho e pela revolução.As outras classes ,médias e camponesas(bem como o lumpesinato),estas sim,só têm que admitir uma culpa.Não é uma culpa ética,mas uma responsabilidade social.E nem se fale,claro,na burguesia!!Eu,como  classe média(ego de classe média)só encontro o bem estar no outro,material,numa transcendência pervertida.
Existencialmente ,e Nietzsche contribuiu para o existencialismo,não há como exigir esta obrigatoriedade.O direito ,inclusive,com sua  visão de individualização da culpa,segue Nietzsche,sem o saber.O filho do patrão que recebe uma ótima existência,assim como o do  aristocrata,não tem esta culpa,o seu problema de sentido é igual ao que está debaixo da ponte(ideologia  liberal).
A luta de classes ataca este pressuposto existencial verdadeiro,mas como eu tenho dito esta é uma crítica que Nietzsche faz de toda uma tradição de controle e manipulação,que está associada sim à metafísica e que funda uma honestidade real diante do sofrimento(de Cristo entre outros):por menos  solidário que se  seja a sua existência não é ilegítima ou inautêntica porque morreu Joana D´Arc;por mais interessado com o sofrimento,o mesmo acontece.
Então porque construir solidariedade?Porque associar-se se isto não traz senão fugacidade,isto é,se sua felicidade não depende realmente do outro?Se não há como chegar ao todo,isto é,à felicidade geral?Se o uber-mensch não tem como e não tem porquê chegar  ao HOMEM?


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

São Paulo e Nietszche



Continuando o nosso estudo crítico sobre Nietszche a  relação acima posta entre estas duas personalidades nos leva de novo ao problema do Anticristo,a  maldição do cristianismo,a  compaixão,cuja presença só faz  a  consciência do rebanho,do escravo.
Eu disse que a  experiência humana não podia se  romper.Estamos todos unidos por esta experiência,seja São Francisco De Assis,seja Hitler.
Quando Nietzsche preconiza ao caráter nobre a  ausência de compaixão,ele une o judeu e o seu algoz,pois  ambos são perspectivas legítimas se deixarem de lado a compaixão ,porque o critério moral é exatamente esta consciência do escravo,o ideal ascético,de negação de si mesmo.Aquele que constrói os seus valores sem a abnegação em relação ao outro,ao sofrimento do outro,afirma-se,afirma  a sua perspectiva.
Por isso foi possível a Delleuze  fazer uma associação trans-histórica entre Spinoza e Nietzsche ,a partir do conceito do primeiro “ as paixões alegres”.
Contudo eu disse também ser impossível afirmar uma perspectiva assertiva deste tipo,afastando as “ paixões tristes”,porque  a experiência humana é única,não havendo uma separação radical ente estas antinomias,triste/alegre,bem/mal.Impossível que o aristocrata não fique triste uma vez  na vida e o asceta,alegre.
Seguindo Kant deve-se buscar o bem,mas o bem, e aí ele se separa de Kant,é esta perspectiva.
Uma coisa é  a culpa,outra a  compaixão.Não é verdade que a compaixão só exista indissoluvelmente ligada à  culpa.O cristianismo fez  esta junção,por interesses político/históricos,mas na verdade,se nós olharmos o pensamento do fundador terreno do cristianismo,São Paulo,nós veremos,mais uma vez   que por mais que se busque o caráter nobre,aristocrático,não há como legitimá-lo frente ao pequeno ao escravo.
Bem entendido,que o escravo que se rebela,como Spartacus,pode  adquirir aos olhos de Nietzsche um caráter aristocrático.Consciência de escravo,repito,é o ideal ascético,mas mesmo neste ideal,há um elemento de nobreza,que São Paulo ressalta.
A compaixão pelo sofrimento,aparentemente,é oportunista.Aquele que  vive desta abnegação pelo outro,que sente compaixão,não passou pela agruras de fato e  se se colocar diante possibilidade,foge,como Pedro no dia da  prisão de Cristo.A compaixão e  abnegação seriam atitudes falsas.É neste viés  que o uso político da religião,a partir de Constantino,se  dá.
O ideal ascético permite manipular massas inteiras de pessoas que reproduzem a sua paralisia em nome de  seus irmãos que sofrem.
Na verdade este problema não é assim tão simples.Como não existe relação necessária absoluta entre compaixão e culpa,também não há entre a  abnegação ascética e o mundo real.O despojamento real dos irmãos,é o material,isto é, a  religião,todas elas ,criam a necessidade de compensação,de  remição em vida daquele não sofre diante do que sofre,pelo critério do despojamento das questões materiais.
Diante de Cristo na cruz a busca de  riqueza, a ostentação,a vaidade são pecados mortais.
Este raciocínio vem de São Paulo ,da Epistola ao Corintios ,um povo que só se preocupava com as questões materiais,sem lembrar do sofrimento de Cristo na Cruz.Embora se possa questionar a veracidade da ressurreição,do ponto terreno/material a única forma de sair do hedonismo pecaminoso é admitir a ressurreição,ou pelo menos esperar e  esta só tem validade com o sofrimento de Cristo.Se Cristo se  sentisse bem na Cruz não tinha sentido nenhum e se  a ressurreição não fosse compensação pelo sofrimento,pelo outro(pela humanidade)” vã seria  fé”.O comportamento anti-hedônico não se funda no seu próximo,mas em algo que está acima de  todos que é Cristo,um princípio de transcendência,que deve ser lembrado nos momentos de fruição,os quais não são legítimos senão exercidos junto com esta lembrança.
Se não houvesse um deus que sofresse por todos o sofrimento do próximo imporia um compromisso sim,desencadeado pela compaixão,mas esta relação se  diluiria nesta imediaticidade,não fundando um princípio de compromisso geral com o sofrimento,visto agora como injustiça,um programa de construção de uma humanidade,voltada para o bem.
Quando Nietzsche dilui,no trans-valorador este projeto ele está negando as possíveis relações mediatas entre o que não sofre e o que sofre,confundindo a crença em si com o seu uso político.
Beber um bom vinho é algo que se perde se a culpa está presente,mas a compaixão cria limites psicológicos para a fruição sem levar ao egoísmo pessoal,individualista.Se o sacrifício de Cristo não é importante “ comamos e bebamos que amanhã morreremos”,mas a lembrança não nos obriga à negação das necessidades,da satisfação das carências.
O hábito protestante de  rezar na hora de comer  remonta a estes princípios paulinos.Comer é uma atividade-meio,não uma finalidade,como o sexo e o outros prazeres.Não é o cristianismo o descobridor  disto,é  a própria experiência humana.
Acima de tudo está mais do que provado que a ausência de compaixão é a origem das psicopatias.A não inclusão no ego,no tempo de  formação do ego,desta experiência, perverte o eu,tornando-o destrutivo(ou outras coisas).
Ainda que muitos aristocratas tenham cometido crimes  sem culpa e  a remição ficou perdida para sempre ,ainda que Hitler não tivesse remorso nenhum por não ser São Francisco de Assis,a defesa ,para a humanidade em geral de um critério nobre deste tipo põe em risco este conceito abstrato,ideal,que não pode  ser destruído assim,havendo utilidade e necessidade nele.
Até o marxismo de Althusser,com seu anti-humanismo teórico fundamentou perversões absolutas,inclusive pessoais.Embora não haja adequação entre a o mundo real e o ideal,e ainda que muitos  vivam sem ideais,sem utopias inclusive,este princípio norteador não é inútil,o que veremos no próximo artigo.