sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Coletti,Kant,Hegel,Marx

Continuando a análise desta famosa entrevista de Coletti ,perdida nos anos 70 ,mas premonitória.Nestes mesmos parágrafos que citamos no artigo anterior outras observações são feitas por Coletti a respeito de Kant,Hegel e Marx.Como consequencia destas observações.
A primeira destas se refere ao problema do caráter cristão de Kant,tanto quanto de Hegel.Na tradição marxista esta questão é fundamental para definir-lhes o caráter de filósofos idealistas,mas como Coletti(e eu)considera que Kant é mais materialista que muitos materialistas e mais do que Hegel,o problema da concepção religiosa de cada um assume importãncia capital.
Ao que se saiba Hegel era luterano e Kant pietista,uma sub-seita especificamente prussiana do luteranismo.
Era mais fácil explicar tudo isto se Hegel fosse católico,mas ele está inserido na reforma protestante.
Ocorre que o protestantismo não é tão atinente aos principios inicialmente propostos por Lutero e isto é mais do normal e óbvio.Aos principios anti-idolátricos e anti-insitucionais da reforma há seitas profundamente contrárias ao despojamento protestante, intermediando entre a fé e Deus,a fé e os homens,mediações tão complexas quanto às católicas,como o papel da autoridade e do autoritarismo,o papel da idolatria e da superstição.
Para o que nos importa aqui é a relação de direta do homem com a fé,pelo coração,que nos orienta a compreender estes filósofos,mesmo os ateus,como Marx,os quais,no entanto,como ele,reconhecem o valor histórico da religião.
Com a reforma a questão da prova racional da existência de Deus perde força e ganha a desnecessidade de considerar Deus como um ente atuante no mundo.
Quisesse isto ou não,o protestantismo facilitou as coisas para os agnósticos,como Voltaire,que não atribuía importância nenhuma na prescrutação dos designios insondáveis de Deus,frase bem a gosto de Bossuet,que o francês sempre criticava.A figura providencial,a providência divina não casava com as leis da natureza.
Para Coletti,embora Hegel fosse um herdeiro desta tradição crítica,buscou sempre uma adequação,um arranjo(absurdo) entre Deus e a dialética.Mas como cinciliador em ente imóvel com o movimento dialético?
Coletti ressalta a insistência de Hegel no argumento ontológico de Santo Anselmo(católico),mas por trás disto está novamente o problema idealista(aí sim)da transcendentalidade.As ideias transcendentais,religiosas,” criam o mundo”.O argumento ontológico dá conta,segundo Santo Anselmo,que é impossível a uma criatura imperfeita e pequena ter ideia de algo perfeito e maior,algo capaz de criar o mundo.Em outro artigo analisarei esta questão.
Hegel tentou de todos os modos manter este Deus criador e Kant certamente acreditava nele,muito embora alguns autores o tenham como Deísta,coisa de que tratarei também em outro texto.
O fato é que Hegel pensava ainda num Deus e isto talvez tenha confundido muita gente na análise do Espirito Absoluto,como o Deus de Hegel,que se esquece do mundo,nas manifestações particulares do Ser,para só depois, na aufhebung,apreender o real total,como um todo.
Kant não colocava Deus na natureza,no Ser e no mundo.Apesar de seu propalado idealismo cristão,foi o primeiro a mostrar que não há nestes topos,nestes locais, a presença de Deus,a exigir uma adequação lógica entre o mundo objetivo e as inferências lógicas da razão.O mundo não é feito para o homem pela primeira vez.Ele podia ser colocado ao lado de Darwin,Freud e Copérnico,no inicio do filme sobre Freud de John Huston...
Este é o sentido da “ Ding-an-sich” incognoscível:não há esta integração absoluta,sujeito/objeto.Kant foi o primeiro também a mostrar que a filosofia,como a razão,não têm como provar que a realidade existe(Carlos Nelson Coutinho gostava desta passagem),mas que o sentimento do mundo(Carlos Drummond de Andrade) é que o traz para a subjetividade,sendo esta descontinuidade o elemento decisivo em Kant para entender a integração sujeito/objeto,que,nele,é muito diferente da de Hegel.Aqui Kant vence Hegel e é por aqui que acho que Hegel deve ser reavaliado.De novo assunto para um outro artigo...
Muita gente não concorda comigo,mas eu faço um traço de união entre estas posições kantianas e o Descartes de “As meditações metafísicas”.
Em certo momento Descartes,para mostrar permanência do cogito como base fundamental da existência (cogito ergo sum),faz uma pequena experimentação com uma vela acesa:ele diz que a vela é tida como tal,ao ser observada no inicio.Com o tempo a chama transforma o corpo da vela em algo indistinto e ela própria desparece ,deixando de ser chama,para ser pavio morto.E assim ,por ação humana, poderíamos transformar as coisas que sobraram em outras coisas,indefinidamente.
O Ser ,como a subjetividade,estão inseridos neste processo temporal de transformação permanente,mas Kant incluiu a subjetividade,coisa não feita por Descartes ,por Hegel e até,por Marx, a partir da constatação de que a dicotomia cartesiana sujeito/objeto se modifica pela relação a latere (derivativa ou consitutiva?)entre a razão e a sensibilidade.Isto aí é meio chavão,mas vale.Por isso ,embora Kant seja um racionalista ,ele não é como Descartes ou os outros,pois é mais do que isto:ele é um criteriológico,um criticista,unindo,inclusive a tradição racional ,explicativa,com a narrativa artística,juntando a razão com a ação humana.
Neste último caso é que fica claro que o problema da ação humana,especialmente a ação revolucionária,proposta por Marx,não pode ser reduzida às relações materiais de existência,às condições materiais de existência,porque o homem não é resultado destas condições,mas seu produtor também .Embora Marx reconheça o papel da autoconsciência do problema social e se refira ao caráter essencial da atividade humana(“ o homem é um ser que produz”),ele só s e refere ao trabalho,sem considerar a expressão cultural,artística,politica,partícipes do processo de libertação(e da vida).Esta lacuna é a responsável pelo que o marxismo s e tornou no século XX,com raras exceções.

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