quinta-feira, 8 de julho de 2021

Freud e a direita

 

A direita atual não ataca só o comunismo,com o seu “ livro negro”.Ela ataca figuras intelectuais ligadas à modernidade(já que ela é medieval).Num livro “ negro” sobre psicologia ela ataca Freud.Freud e outros próceres da psicologia moderna.

A direita tem razão em muitas coisas,como eu tenho dito aqui e em algumas críticas,não raro.

A narrativa da ciência é feita depois que as suas descobertas e realizações se fixam como provadas,mas quando isto se dá forma-se um esquema de poder em volta dela,um esquema que favorece mais aos seguidores do que aos cientistas e realizadores propriamente,embora eles às vezes ajudem na sua formação e participam dele.

Muito do que se diz a respeito de descobertas e realizações são construidas depois ou são distorcidas na passagem entre a realização e a chegada ao vulgo,ao senso comum.Mas igualmente os realizadores,datados e condicionados por limitações pessoais contribuem para estes problemas ,que,não raro,atrapalham a compreensão do valor real das descobertas e realizações.

No caso de Freud a história não é diferente(mas vale para outros).A direita toma o caso Dora,que teria sido o ponto de partida da clinica psicanalistica(já que a teoria já vinha se constituindo desde os anos 90 do século XIX) e relativiza a cura terapêutica ,digamos,imediata da paciente , e revela fatos que dão conta de que ela só efetivamente “ melhorou” muitos anos depois do encontro com Freud.Há outra hipótese que eu não discutirei aqui,segundo a qual a doença dela era física e não psicológica.

De fato as narrativas das curas de Freud,como a do “ homem dos ratos” ,dão a entender que esta é simples e imediata à atividade do analista.

Com os relatos que Freud deixou fica-se com a impressão de que a pura e simples narrativa compreensiva e auxiliada pelo terapeuta, do paciente é mais que suficiente para curá-lo.

Na verdade não foi bem assim.O processo psicanalítico não é um processo mágico,mas se tornou no plano geral,no reflexo popular que a ciência tem.

José Guilherme Merquior insistia muito neste aspecto:os filmes feitos sobre Freud ressaltavam mais a face palatável,artística de seu percurso biográfico e também de suas conquistas.O fato dele ser transposto para a arte, a arte que ele gostava e usava tanto em suas análises,confirmava esta visão de que a psicanálise,se não era um embuste,não era uma instância segura,uma ciência firme.

O problema da clinica é que ela deixou de ser o lugar da indetificação da neurose para construir narrativas egocêntricas,auto-referentes,fazendo da patologia um meio de vitimização,com o intuito de chantagem ou chamar a atenção para si.O paciente ,com a ajuda do terapeuta, produz um personagem.

O próprio Freud ajuda para esta concepção,na medida em que se coloca como o criador de uma ciência racional apta a explicar racionalmente uma coisa que prima pela variabilidade,pela imprevisibilidade,como é o inconsciente.

Ainda que Freud tenha recuperado o valor da superstição,como mediação legitima para explicar a natureza humana,ele mantém ,como farol,um racionalismo muito intenso,algo que foi muito criticado pelos seus seguidores e contestadores.

Quer dizer ele não é um racionalista rigoroso,mas não cai na profundidade do inconsciente,o que só pode ser explicado por ele não ter tempo de vida para notar isto,ou seja,não ser eterno.

O filósofo Husserl comentou esta fatalidade em determinado passo de sua vida intelectual:uma das questões mais terríveis da atividade intelectual ,que é extensiva e apresenta sempre muitas possibilidades,é que o tempo biológico é relativamente curto.

A direita se insere nisto aí para diluir totalmente com a contribuição de Freud e é também muito normal,porque é natural que as ideias de algum autor sejam testadas e analisadas no seu tempo e após a sua morte.

Isto pode parecer à primeira vista prova da qualidade do trabalho,mas é evidente que ronda o perigo real de sua dissolução e descrença.

No caso de Freud o que penso ser a decretação de sua perenidade é o fato de que ele sistematizou a inadequação do ser humano diante do mundo,uma ilusão racionalista que Freud mesmo devia de ter analisado acuradamente.De outro lado e seguindo nisto aí Freud prova que o falso não tem como ser abordado só pela ciência objetiva,mas por uma que considere a verdade subjetiva,que torna o falso verdadeiro.

As afirmações vindas de um Feuerbach sobre a sagrada família só têm explicação por uma visão psicológica que encare a verdade como algo igualmente subjetivo.Rigoroso,mas subjetivo.

Mas no que tange a esta problemática terapêutica,onde surge a cura mágica do paciente,algo similar assim ao comportamento do médico,que prescreve e está tudo solucionado,assiste razão à direita quanto à sua impossibilidade ,mas não quanto à sua veracidade no tempo.

Quero dizer no tempo extensivo de uma vida a clinica psicanalitica continua a ter validade,dentro de certos critérios,de certos limites e objetivos.Mas mais do que isto o aconselhamento ,com base na psicanálise, ainda tem importância.Eu vou falar deste último parágrafo no próximo artigo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário