quarta-feira, 23 de abril de 2025

Os fantasmas em Rei Lear

 

Em Rei Lear há uma identificação entre os personagens e a fantasmagoria.É uma espécie de mitologia,personagens arquetipicos e não pessoas realmente.

Dir-se-ia que tal fato acabaria com o realismo da peça e de Shakespeare ,mas não,na verdade aprofunda.

E isto se dá porque estes arquétipos servem para uma discussão sobre os caminhos e descaminhos da humanidade.

Em um livro que escrevi há muitos anos tratei do que realmente é o Rei Lear:um rei pratica violência e injustiça a vida toda e quer se aposentar;entrega às filhas que ele ensinou ,o poder, e elas fazem com ele o que ele fez com todo mundo.

Mais realístico impossivel.Os personagens são como que mitológicos e representam os aspectos vários desta problemática,digamos assim.

As duas filhas são dominadas por instinto sexual e de poder,duas coisas que não raro andam juntas.A única filha,que diz a verdade e por isto é banida,Cordélia,tem uma relação de amor com o pai,que se revela na sua capacidade de dizer a verdade.

O próprio Lear,velho senil,não deixa de mostrar as suas características de personalidade.Também Edgar e o filho do chanceler continuam a questão do amor como verdade e não bajulação e depois nós temos dois serviçais,um que perde os olhos e só vê o seu erro neste momento e o outro,mas baixo,que acaba no cepo,por ser excessivamente fiel e obediente.

E o personagem universal de Shakespeare,que ridiculariza a todos,inclusive o rei ,que passa a entender o que fez ,através de suas piadas e gracinhas.

A última cena do bobo é antológica,já que o rei reconhece a sua humanidade(dele)e o põe num lugarzinho de seu coração.

O filho de Edgar que trai o pai,gloster,é um cinico e é o que diz Lear,já com uma certa lucidez na sua loucura: “não tens olhos,mas agora tu vês”.

Uma inversão que perpassa toda a peça:a verdade sempre encontra uma senda para se impor,apesar das pessoas ,dos personagens.

É uma peça que desvela as ilusões do ser humano e o ensina.


sábado, 12 de abril de 2025

Mais fantasmas de Shakespeare

 

Continuando a análise de Shakespeare lembro-me bem do fantasma de César diante da tenda de Brutus ,vaticinando a derrota e morte deste último em Philipos,local da batalha em que Brutus perdeu a vida.

Parece-me,no entanto,que a discussão nesta peça é bem outra:a contraposição entre o ideal republicano  e os impérios e monarquia.

E conceitos que se lhes seguem:autoritarismo e divisão de poder;esperteza individual e idealismo republicano infantilizador.

A primeira dicotomia nós conhecemos,mas a peça de Shakespeare se refere a dois níveis de problemas:idealismo castrador e falta de idealismo que rompe barreiras,ilegitimamente.

Este confronto se vê quando Marco Antônio e Brutus debatem diante do cadáver insepulto de César e à frente da plebe.

O primeiro expõe a sua sagacidade e conhecimento da vida;o segundo age só movido pelo seu idealismo republicano,que Shakespeare elogia no final.

Brutus quer convencer,acreditando na persuasão.Marco Antônio deseja manipular.Brutus acredita na capacidade racional da plebe,enquanto que seu oponente sabe ser isto uma ingenuidade.

Marco Antonio adentra o debate carregando o cadáver de César,o que choca a multidão.Interrompe o discurso certinho de Brutus,que não se modifica.

Confiando em seu idealismo Brutus se retira permitindo a Antonio virar a mesa ,isolando os matadores de César.

Toda esta discussão se espraia pela psicologia de cada um ,mas também pelos caminhos políticos da humanidade,que oscila entre estes dois momentos :o da esperteza e o do idealismo,persuasão ou manipulação.Há como conciliá-los?

 

 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O fantasma do pai de Hamlet II

 

Eu já falei muito sobre o caráter republicano de Shakespeare.E da maioria dos mestres renascentistas.Fica evidente nos elogios que ele faz a Brutus,encobrindo suas preferências na questão da inveja.

Brutus foi o único que matou César,seu pai,por convicção e não por inveja.Não pelo poder,mas pelo principio politico.

Em toda esta questão dos fantasmas nas peças de Shakespeare me parece existir uma danação das monarquias  e um favorecimento das repúblicas,como regime legitimo,cujo fundamento é legitimo.

O que faz o fantasma do pai de Hamlet senão lembrar a seu filho da legitimidade dele face ao seu cunhado,que tomou o trono e a sua esposa?

É certo que a legitimidade aqui é monárquica e a ilegitimidade é a força,é a pura ambição,que já tinha “danado” Macbeth.

No entanto,em toda a obra de Shakespeare se relaciona a monarquia com estes atos ignominiosos de tomada do poder,porque o poder está na mão de famílias,de pessoas e não de grupos que são responsáveis pelo estado.

No passado a noção de republica era menos relacionada ao sufrágio do que à divisão do poder.

O que opõe os senadores  a César é exatamente  esta contraposição entre o poder dividido e aquele que é enfeixado numa mão só.

O desenlace de Hamlet é uma resolução dramática ou tem um significado associado a estes problemas?Parece-me mais uma questão dramática e familiar,mas certamente Hamlet  tem um quê de vingador republicano ,porque a tarefa dele não é só familiar.Isto se depreende da sua condição edipiana.A sua tarefa é acabar com um poder ilegítimo.

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

O fantasma do pai de Hamlet

 

O fantasma do pai de Hamlet é uma metáfora.Os fantasmas de Macbeth são uma metáfora,mas têm um significado psicológico sim,que mobiliza o corpo do personagem,que deve transparecer nas suas ações e no seu rosto:uma angustia muito séria que acompanha os ilegítimos e a ambição sem fundamento de poder.Como vimos no artigo anterior.

O fantasma do pai de Hamlet é uma metáfora porque o personagem(Hamlet)guarda a sua racionalidade intacta diante das tarefas que lhe são exigidas.

O complexo edipiano evidente,como notou Freud,revela a presença das emoções e sentimentos,mas ele está no comando,o que não acontece em Macbeth,em que as circunstâncias vão conduzindo o personagem para o desenlace fatal de sua trajetória,mostrando também que a previsão das três “ bruxas” não era tanto assim,porque óbvia,exceto pelo homem não nascido de mulher.

Hamlet cumpre estas tarefas enfrentando dramas pessoais,crises de consciência e sofrimento psicológico intenso,mas  a razão está lá,a guiá-lo.

São dramas edipianos sim,avant la lettre .E nos remetem à impossibilidade de Hamlet resolver estes conflitos(faltou um psicanalista).

Na esfera do real a solução é sangrenta,como todo o nascimento:no fundo Hamlet é semelhante a Lear,uma vez que está se tornando homem e independente.

Mas uma coisa é resolver questões de estado,outra,familiares.

Pouca gente nota isto em Hamlet:os problemas do estado se imbricam com os familiares,como acontece nas monarquias.

Poderiamos pensar num inicio de totalitarismo em Hamlet.

domingo, 6 de abril de 2025

Os fantasmas de Shakespeare II

 

Nós sabemos que muitas figuras históricas fizeram coisas terríveis e que nunca tiveram o mais minimo remorso.

Quando Shakespeare trabalha com estas figuras históricas ele não está propriamente com as figuras históricas ,mas com conceitos que elas representam.

A figura de Macbeth é a da ambição desmedida,que não tem fundamento.Certamente isto não ocorreu pensar ao Macbeth real,mas os acontecimentos de sua vida ensejam uma discussão sobre a ilegitimidade de seu poder.

Esta ilegitimidade pode ser em diversos níveis:pessoal(de onde surgiriam os delírios);politica;histórica.

A histórica é a narrativa dos descaminhos do poder de Macbeth;A politica é o meio pelo qual ele chega ao poder e em Shakespeare a força não tem autenticidade para implantar e manter um poder.

Acima de tudo Shakespeare critica o que não está certo no fundamento das ações.Ele não é moralista ou moralizador ,mas uma analista da psicologia humana  avant la lettre ,usando só os elementos empíricos da vida e  as ações:construir um poder a partir da destruição leva à destruição.

E do ponto de vista pessoal ,que é onde está a psicologia ,as consequencias  dos seus atos são vistas nos delírios,nos fantasmas.

Mas a premissa artística é que vale ,não a figura histórica propriamente,não os fatos históricos em si.

O mesmo acontece com Cidadão Kane:William Randolph Heart jamais viveu qualquer contradição daquelas expostas no filme,mas os conceitos relativos à riqueza pela riqueza,à solidão de quem quer  impor seu pensamento a qualquer custo estão lá “ estudados” pelo cineasta.

Uma coisa é a realidade outra  a arte .

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Os fantasmas de Shakespeare

 

Em outro artigo eu expliquei em pessent todos os fantasmas das peças de Shakespeare.Mas eu quero fazer uma pergunta agora e contrapor dois deles:eles são fruto também de alucinações por parte dos personagens?Ou seja pode-se fazer uma leitura psicológica deles?

Na minha opinião, o fantasma do pai de Hamlet é só  arte,só teatro.Não há psicose possível de identificar no aparecimento diante do principe.Ele não está em alucinação.

Mas no caso especifico de Macbeth não há como não ver um problema psicológico na sua visão do rei deposto.

Mas só o sentimento de culpa,de ilegitimidade,é suficiente?

De modo geral o núcleo central de toda psicose é uma contradição interna,insolúvel ,que se espraia para a  “ objetividade”.

No caso de Macbeth é isto.Não vendo em si legitimidade para governar,ele começa a ter delírios.Sentimento de culpa?Da mesma forma nós vemos algo semelhante no aparecimento de César diante de Brutus no campo de Batalha e os delírios auditivos de Ricardo III,no final de sua peça.

Estes exemplos são psicóticos,não só artísticos,mas expressam uma compreensão empírica avant la lettre ,da psicologia humana:não há uma explicação freudiana ou junguiana,mas a experiência humana indica  que em momentos de contradição pessoal,culpa,medo extremo,imagens fictícias ,delírios aparecem para aterrorizar estas pessoas.

Mas por trás de tudo isto as razões politicas,pessoais,éticas assumem um papel decisivo:o sentimento de culpa em Brutus,por ter matado seu pai;a ilegitimidade do poder em Macbeth e o medo  em Ricardo III.

Existem intersecções entre estas razões e a psicose?Próximo artigo.