terça-feira, 31 de março de 2020

Nietzsche

Esclarecimentos sobre o artigo anterior

Muita gente não entendeu bem o que eu disse no artigo anterior sobre as obras de Nietzsche.Isto porque ao longo de minha atividade de pesquisador deixei ao léu muitas informações sobre o método e em alguns artigos não dá para simplificar sem vulgarizar ou comprometer as explicações.
O Nascimento da Tragédia” é fundamental porque é nele que Nietzsche rompe com a metafísica e com razão identificada com a metafísica.São coisas um pouco diferentes,mas eu não vou tratar disto aqui agora.
Para entender porque juntei razão e idealismo temos que entender o método racional dos gregos,especialmente Platão e Aristóteles,professor e aluno.Porque é sobre esta concepção básica racional dos gregos que Nietzsche irá fazer a sua rutura e construir a sua filosofia.
Em primeiro lugar nenhum saber humano tem condições de abarcar o mundo todo e o tempo.A busca do conhecimento é como perseguir a fuga cósmica e o que o ser humano faz é tocar parte desta fuga.
O mito de Dédalo e Icaro representa,como eu tenho citado constantemente,esta verdade,muito embora ela tenha significados mais éticos do que gnosiológicos,enfatizando mais a busca de uma medida subjetiva no labor,própria dos jovens,do que a questão dos limites do conhecimento.
Os antigos ,e estes de que estamos falando , eram monistas avant la lettre e isto porque ,entre outras coisas,não admitiam o movimento físico e não tinham noção da infintude do mundo,do cosmos,como temos hoje.Um principio único,um logos .
A intenção deles era construir um conhecimento universal ,necessário,que expressasse de algum modo o mundo real e o explicasse .
Para Platão a realidade era mera cópia dos arquétipos ideais e só pela razão e pela ascese da razão que repudia estas cópias para atingir estes modelos ideais, se poderia chegar à verdade,como algo universalmente válido.
O critério de Aristóteles para chegar ao universal é totalmente diferente porque ele parte do mundo sensível para racionalmente encontrar aquilo que é comum a todas as coisas e a todos os seres,deixando de lado o que é acidental,acessório.A ciência do conhecimento para Aristóteles é o estudo do Ser enquanto Ser,das sua leis permanentes internas em suas múltiplas manifestações.Uma unidade na diversidade.
Mas o que ambos os filósofos fazem é construir padrões,conceitos a partir de idéias ,ideações ,idealizações supostamente adequadas ao mundo real,seja ele arquetípico ou real.
Contudo se a razão toca o mundo real,a partir de ideias,não o toca totalmente,fazendo parte do processo de conhecimento racional a idealização do mundo.
O termo idealização tem vários significados,inclusive ético,no sentido de buscar um ideal,uma causa,mas no plano do conhecimento racionalizar o mundo é ideá-lo,idealizá-lo.
Neste sentido eu usei razão e idealismo juntos,já antecipando Nietzsche.
O fim do racionalismo clássico,do século XIX para cá,é uma negativa quanto ao caráter real da razão e de sua obrigatoriedade como modelo de comportamento,no caso próprio de Nietzsche.
No caso de Marx há um projeto anti-metafísico,que não se realiza,como demosntrou Benedetto Croce.Marx pretende pela antropologia do trabalho diluir a metafísica hegeliana,mas se mantém nela afinal e por isso continua no sistema (impossivelmente)fechado.Vou tratar disto nos artigos seguintes sobre o marxismo nietzschiano.
A metafísica se diluiu(não se esgotou)ne medida em que a fuga cósmica se tornou,com o reconhecimento do movimento,algo claro(Kant).
Os sistemas racionais metafísicos do passado foram e são progressivamente analisados segundo esta evidência de diluição,ou seja,percebem-se os elementos cristalinos de idealização presentes na razão.E ficam alguns de seus temas.
A Razão padroniza a vida para dar-lhe ordem e sentido e é aqui que Nietzsche lança a frase fundadora de sua carreira:” A metafísica é a continuidade errônea de um erro inicial”.Pensar que estes modelos são essenciais para manter a consciência no caminho da vida ,no sentido da vida é o que a inviabiliza.
Como um filósofo da vida,Nietzsche diz que a consciência pode se dissociar disto exatamente para estar na vida,para ser vida.
Um exemplo que explicita bem esta situação:o conceito de culpa .
A culpa é uma categoria ,um padrão racional,metafísico,uma realidade além da vida real ,imposta a ela,pelo moralismo , pelo cristianismo.
A consciência não tem porque ,de forma pré-dada ,assumir uma culpa,se não a tem.Entranhá-la em si mesma diminui a potência ,reprime a vontade e distorce a perspectiva.Adoece, diriam os delleuzianos baseados em Spinoza.
A consciência age no sentido da vida,da potência,se deixa de lado esta conexão e repudia a culpa.Por isso em genealogia da moral Nietzsche fala em “ má consciência” ou “boa consciência”,quando respectivamente se conecta com a culpa ou a repudia.
Este ponto é o que motiva Luckács a fazer a relação de Nietzsche com o barbarismo nazista e é um dos fortes exemplos desta verdade.
Mas eu tenho dito coisa semelhante sempre a respeito de Nietzsche e é o que me impulsiona a discutir o marxismo niezschiano ou o contrário o nietschianismo(se é que existe)marxista(antecipado ,parece,por Franz Mehring):o que deve ser repudiado é a sistematicidade fechada ,proposta pelo racionalismo antigo.Diluída, a relação entre a consciência e a razão é inevitável,no plano da experiência.
Não há como não concordar com Luckács de que se não se pode dissociar esta concepção genealógica de Nietzsche de uma visão psicopática da vida,que ,de forma pré-dada,inocenta aquele que impõe dor a outrem ou obriga aquele que sofre a banalizá-la.É como se o torturador não tivesse culpa e o torturado não pudesse procurar justiça,no afã de ser vital .
Quando comecei os meus estudos sobre Nietzsche ,há muitos anos,pensava que esta perspectiva era referenciada a um sistema de valores éticos(não morais)que separa de vez a consciência(valor[hierarquia de valores])da moralidade(razão[metafísica])e que,portanto,o comportamento ético(não moral)impunha uma consideração do outro(do sofrimento do outro)como atributo inarredável do valor:a estimação do (sofrimento)do outro é a da dor de si mesmo.Se eu mesmo não sofro não há porque não considerar a do outro como algo de mim mesmo,mesmo que não venha(não há dialética).
Ao ler no livro do filósofo as célebres diatribes de Nietzsche contra os fiéis que saíam da Igreja sem se modificar interiormente(tão ao gosto de meu mestre leonardo boff e dos cristãos de esquerda)pensava numa empatia psicológica e axiológica com o outro ,mas ,embora,tenha dúvidas ainda,dos textos,não se há de depreender isto não.A má e a boa consciências o são na medida em que ela se favorece,se potencializa.
Ao exigir dos corintios a lembrança do sofrimento de Cristo na cruz,como dogma essencial da prática cristã verdadeira(no entender dele)São Paulo falseia a culpa,Nietszche tem razão: não é a humanidade toda que é culpada ,mas aqueles que estiveram lá e cometeram o crime da crucifixão.É a história da música do Biquini Cavadão “ eu não matei Joana Darc”.A lembrança,porém do sofrimento,enquanto permanece no presente,é uma exigência,compassiva,da empatia necessária ao bem,considerado em termos genéricos,não em termos do que vai além do bem e do mal.
Se o sofrimento tivesse sido já extirpado nem à história interessaria abordar o sofrimento do passado,a não ser como lembrança,memória,no sentido de advertência que o filósofo Max Scheler usou quanto ao nazismo.A não ser como análise permanente e defensiva de futuras re-voltas do passado.Como um mlitar que estuda as possibilidades futuras de ataque para se defender e aos seus.
Nietzsche propõe uma filosofia da vida que só se sustenta no presente(o nascimento da das-ein,do presente em Heidegger?),porque o passado não importa e o futuro não chegou.Ou não chega se não for presente.Quando chega já não é.
Mas eu entendo que ,pelas razões supraditas,passado,presente e futuro estão interligados(tempo tribio em Santo Agostinho).Para o cristão a memória(do sofrimento[de cristo])é um dogma de comportamento,mas para um agnóstico como eu,nos termos acima,o futuro orienta o presente e rearranja o passado,na medida em que ele não mais se repete no presente,sendo este presente a condição da utopia(futuro).
E se a razão idealiza ,Nietszche,também,de outra forma,como explicarei no próximo artigo.

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